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sexta-feira, 10 de agosto de 2012

OS 100 ANOS DE JORGE AMADO, POR CARLOS HEITOR CONY


Hoje, quando o país e a Bienal do Livro - aqui em SP - cobrem a mídia com rios de informações sobre um de nossos maiores escritores, resolvi postar aqui a linda crônica de outro craque das letras, Carlos Heitor Cony, em homenagem aos 100 anos de nascimento de Jorge Amado.

Texto saboroso e brilhante, publicado hoje na Folha de S.Paulo.

Confira:

O IMENSO JORGE
por Carlos Heitor Cony

Ele foi o único habitante deste planeta que conseguiu acreditar com a mesma sinceridade em Marx e na Menininha do Gantois. Muitos não admitem essa intimidade de Jorge com o marxismo, ao qual aderiu mais com o coração do que com a cabeça. E sua literatura também foi assim. Nada de papo cabeça. Papo coração.

Suando baianidade, melado pelo ouro do cacau, ele foi uma mistura de pai de santo e pajé, um pajé que sabia contar histórias bonitas para a imensa taba global onde à noite, se alguém era capaz de duvidar, ele repetia com astúcia: "Meninos, eu vi!".

Se o poeta é o fingidor, o romancista é o mentiroso. No caso da poesia, quanto mais finge, mais o poeta é sincero.

No romance, quanto mais se mente, mais se é verdadeiro. E nada mais verdadeiro do que o universo de saveiros e moleques, de mulatas cadeirudas e operários perseguidos, de xangôs e iemanjás, de cabarés e velórios, de doutores de borla e capelo e capitães de longo curso, de quituteiras e babalaôs que povoaram suas noites enfeitiçadas, seus terreiros de suor e milagres -que a carne sofre inteira e precisa sentir prazer por inteiro, pois ninguém é de ferro.

Jorge Amado conseguiu o absurdo de ser cético e de ser crente. Só na Bahia podia nascer um sujeito assim. Por isso mesmo ele tinha um gosto de azeite e de sono espreguiçado, de cafuné e de mulata tombada nos fundos da cozinha.

Espiou o mundo com o olho treinado nas fechaduras da vida: compreendeu tudo. Leitores que ele teve em todo o mundo não sabem o que perderam: a pessoa humana que só deu a conhecer uma parte de si mesma. Uma parte que constitui um dos maiores todos da literatura moderna.

E este Jorge começou a se mostrar de mansinho, escrevendo "Lenita", uma novela em parceria com Dias da Costa e Edson Carneiro. Tinha 15 anos. O trabalho em equipe geralmente não figura na lista de suas obras, mas não deixou de ser uma ameaça. Ele queria escrever.

O seu aprendizado não seria feito nos laboratórios da gramática ou nos alambiques da linguística. Como a cozinheira se faz no fogão, prevendo e provendo panelas e frigideiras, Jorge se fez na vida, vivendo e escrevendo. Lenita teria sucessoras: Gabriela, Dona Flor, Tereza Batista, Tieta do Agreste.

Criou uma obra torrencial, humana, quente de vida e de pecado, numa prosa que parecia desleixada aos críticos do "ancien régime" literário, mas que o povo ia absorvendo, gostando e consagrando.

Sua obra é inteira, coerente, vívida, caudalosa, formalmente irregular e densamente regular. Não se deve exigir a mediocridade das fórmulas tradicionais de um escritor cuja força humana e literária criou "Jubiabá", "Mar Morto", "A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água".

Suas mulheres de ancas cobiçadas, seus turcos fesceninos cheios de truques, seus marinheiros mentirosos, seus santos e suas senhoras afogadas em mantas e colares coloridos são sempre os mesmos, em qualquer língua ou sob qualquer sintaxe.

Jorge faria hoje, 10 de agosto, cem anos. Fez mais do que isso. Para todo o sempre, ele ficou inteiro em sua obra, e para aqueles que o conheceram foi uma figura humana espetacular. Dele guardo duas lembranças pessoais.

À minha revelia, marcou um encontro com a Menininha do Gantois e foi comigo para ver como me sairia. Garantiu-me que a visita "mal não pode fazer". Filho dileto de outra mãe de santo, ele não podia pedir a bênção de uma rival. Mas pediu e foi abençoado. Para todos os efeitos, ele era filho e devoto de todas as mães de santo da Bahia.

Tancredo Neves foi a um almoço na "Manchete". Quando me viu, o já presidente eleito elogiou crônica publicada naquela semana, aludindo a uma suposta "plasticidade" de estilo. Tive meu minuto de glória. Logo chegou Jorge Amado, blusão com todas as cores, boné de operário russo e capanga pendurada em diagonal no seu largo peito. Tancredo correu para abraçá-lo e elogiou seu último livro: "Que plasticidade!".

Murchei. Fui me queixar com o Jorge, muito mais escolado em situações iguais. Ele comentou: "O Doutor Tancredo errou de profissão. Seria melhor e maior romancista do que todos nós, incluindo o velho Machado".

terça-feira, 20 de abril de 2010

BRASÍLIA: 50 ANOS, POR CARLOS HEITOR CONY


CARLOS HEITOR CONY

Não chega a ser muito. Na realidade, é quase nada.
Cinquenta anos na vida de uma pessoa é um marco, serve para avaliações e ainda há tempo para projetos. Na história de uma cidade, como Brasília, é muito pouco para uma perspectiva definitiva. O fato de ser irreversível não lhe garante ainda uma historicidade.
Mesmo assim, contrariando grande parcela da opinião pública da época de sua construção, Brasília veio para ficar. Até aqui, parece que para o bem, pois ajudou a integração nacional, criou novas fontes de trabalho e uma imagem positiva das possibilidades nacionais quando empenhadas em alguma coisa grandiosa.
Lembro duas objeções que os técnicos daquele tempo fizeram contra a nova cidade. Um engenheiro respeitável garantiu que o lago jamais se encheria. Mais tarde, JK convidou-o informalmente para um passeio de lancha no Paranoá.
Um técnico em comunicações, famoso pela virulência de seus artigos em jornal, provou por "a" mais "b" que a situação topográfica de Brasília impediria a telefonia, o telex, qualquer meio tecnológico de comunicação. JK mandou-lhe um telegrama no dia seguinte ao da inauguração da cidade.
Politicamente, Brasília criou problemas que não podem ser creditados exclusivamente à sua existência. O isolamento inicial facilitou algumas crises institucionais, inclusive o golpe de 64. Mas criou condições favoráveis à máquina administrativa, nem sempre voltada ao bem do país.
Atualmente, no momento de seu cinquentenário, Brasília passa por grave crise política, que, pelo menos até agora, não teve desdobramento nacional. Neste particular, funciona como uma província, uma paróquia. Paradoxalmente, talvez seja o sinal de sua maioridade histórica.

(Artigo publicado hoje, na página 2 da "Folha de S.Paulo" e que, pra mim, é a mais completa tradução da nossa capital, que tem a mesma idade que eu!)