“Não é bom fazer negócio com judeus”. “Mulher nunca sabe dirigir”. “Gays não servem para serem soldados do exército”. “Os negros não se sobressaem nos estudos acadêmicos”.
Estes sensos comuns acima partem de uma experiência que não é completa e profunda em suas colocações e por acabarem se tornando pseudo verdades universais, e muitos grupos e minorias se sentem delimitados em suas diversas formas de atuar como seres humanos, pois, para o "mainstream" vigente, parece que os grupos acima citados são incapazes de realizar certos ofícios ou não são confiáveis para tal.
Uma pseudo verdade muito difundida no Brasil refere-se aos homossexuais e o futebol: como o esporte se tornou um espécie de emblema da masculinidade, e onde a grande maioria confunde como oposição à homossexualidade, o esporte ficou impróprio para os gays.
Como em outras profissões,muitos homossexuais detestam futebol, mas como tudo nessa vida, isso não significa, nem unanimidade, nem maioria absoluta.
Muitos gays estão presentes dentro dos campos e nas arquibancadas, de forma silenciosa para não romper com um grande tabu da nossa sociedade: gays não servem em nada para o futebol.
Quer uma cena mais gay do que homens suados e sem camisa se agarrando após um gol? Eu não lembro de nenhuma.
Todos sabemos de boatos de jogadores de futebol que transaram com outros homens,e que os mantém em casa como companheiros, mas nenhum veio a público para expor essa situação.
O longa “Asa Branca, um Sonho Brasileiro” (1980), de Djalma Limongi Batista,foi um dos raros momentos que esta discussão foi colocada para a cultura de massa brasileira, graças principalmente à sutileza do diretor e à atuação impactante de Edson Celullari, como o jogador de futebol.
Agora, “Avenida Brasil”, a novela das 21h de João Emanuel Carneiro, retoma este tema.
Todo mundo que assiste a novela - e os personagens do fictício bairro do Divino, onde se passa a maior parte da ação - já cataram que o Roniquito - interpretado pelo ator Daniel Rocha - é uma bichinha que, para agradar seu pai Diógenes - Otávio Augusto - faz parte do time do Divino Futebol Clube.
Foi justamente para ficar mais perto do treinamento como boleiro que Leandro - Thiago Martins - foi morar como inquilino na casa de Roniquito e Diógenes, e as cenas, de uma sutileza impactante, mostram como Roniquito se apaixona por Leandro, e os chiliques por ciúmes que ele tem quando o rapaz passa a ficar com a piriguete Suelen - Isis Valverde.
Divulgação / TV Globo
Roniquito, interpretado por Daniel Rocha, é o jogador de futebol gay de "Avenida Brasil"
Roniquito esconde sua homossexualidade e finge gostar de futebol para não decepcionar o pai machão, Diógenes, situação mais que corriqueira nas nossas vidas.
Assim como na novela, na vida real não são raros os casos de gays - masculinos e femininos - que se encantam por heteros e cultivam um amor platônico.
“Esse tipo de sentimento é o amor idealizado, que não se fundamenta na aproximação, e sim no seu próprio significado. Não tem a ver com interesse sexual, porque se satisfaz por si só, pelo simples fato de existir”, diz a psicoterapeuta Sandra Samaritano.
A especialista afirma que, tal como vem acontecendo na novela, muitos homossexuais se satisfazem apenas com a fantasia.
“Alguns se contentam em desfrutar os momentos que têm com o alvo da paixão no trabalho, na academia, no clube. Preferem amar à distância, porque sabem que, ao abrir o jogo, provavelmente não serão correspondidos e terão que arcar com a dor e a frustração”, diz Sandra.
Na opinião da psicóloga e terapeuta sexual Arlete Gavranic, do Instituto Brasileiro Interdisciplinar de Sexologia e Medicina Psicossomática - Isexp -, colocar ou não tais fantasias em prática é uma escolha pessoal.
“Mas é muito difícil conter ou negar o desejo. Por isso, em alguns casos, acho que o homossexual deve confessar o que sente”, afirma. O tipo de abordagem depende do vínculo de amizade entre os dois, mas, segundo Arlete, nunca deve ser realizada em público.
“Se não houver uma proximidade ou intimidade adequada para abordar o assunto de um modo direto, o ideal é criar um clima para o momento”, diz a psicóloga.
Mesmo assim, é praticamente impossível prever a reação do outro: homens mais machistas tendem a reagir bruscamente, mas, geralmente, a resposta está ligada ao estilo da declaração amorosa.
Do mesmo modo que acontece entre heterossexuais, a amizade pode ser preservada, mas o relacionamento precisa de um tempo para que as partes assimilem o que aconteceu.
“O gay sabe que o risco de ouvir um 'não' é enorme e já se prepara emocionalmente para isso", afirma Arlete Gavranic. "Dependendo da maturidade dos envolvidos e do afeto que envolve a relação, não há maiores sequelas”.
Em relação às circunstâncias da novela, as especialistas acreditam que, antes de tudo, Roniquito precisa revelar sua condição – mesmo porque a possibilidade de ela vir à tona por terceiros só tende a comprometer de forma negativa sua relação com o pai.
Para Sandra Samaritano, o melhor jeito de lidar com o amor platônico é primeiro assumir a própria identidade sexual, visto que ele é mais comum entre homossexuais que ainda mantêm sua orientação em segredo.
“Continuar a camuflar a própria natureza faz com que o gay acabe mergulhando em outras fantasias platônicas, sem nunca viver sua afetividade de fato”, diz.
Divulgação - TV Globo
Gay não assumido, Roniquito (Daniel Rocha), à esq., tem amor platônico por Leandro (Thiago Martins)
Como novela é uma obra em aberto e Roniquito ainda não saiu do armário na trama, vamos ver que rumo esta discussão - que pode ser bem promissora - pode tomar.
Pois não é só para o tabu que gays não podem estar no meio futebolístico, ela pode ser libertadora também para héteros que desejam ser bailarinos ou cabeleireiros sem precisarem passar pela pergunta sobre sua sexualidade, como se este fator alterasse o talento ou a capacidade de trabalho de alguém.
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