Leon Cakoff é um herói da cinefilia.
Foi o criador da Mostra Internacional de São Paulo, evento que tem alimentado o repertório de cinéfilos paulistanos e visitantes durante os últimos 34 anos.
Abbas Kiarostami, Manoel de Oliveira, Amos Gitai, Theo Angelopoulos, Alejandro Agresti, Alexander Sokurov, Béla Tarr... são apenas alguns dos diversos diretores cuja obra Cakoff nos apresentou desde que a Mostra começou, na sala de cinema do Masp, em 1977.
Mostra do quê? De cinema, claro. E internacional, ainda por cima.
Mas podem chamar só de Mostra mesmo.
É como o evento é conhecido por todos que o acompanham, é como ficou gravado por ser "o" evento cinematográfico de todos os anos em outubro, por fazer com que muitos tirem férias de seus trabalhos para enfrentar as filas.
Criar não quer dizer apenas idealizar e realizar nesse caso.
Quer dizer também lutar contra a censura (principalmente a do regime militar), contra a lentidão da alfândega, o despreparo do público, pouco habituado a ver cinematografias distantes (público que já foi pequenino, agora é grande), os problemas do dia a dia que qualquer festival cinematográfico enfrenta, a antipatia de muitos, a inveja de outros, suas próprias tensões, enfim, todo um desafio diário, um leão por dia a ser enfrentado e dominado.
E também um desafio anual, para nosso prazer.
Leon Cakoff virou empreendedor.
Como todo evento que faz sucesso, ou você o encara de frente e torna-se um empreendedor desse evento, fazendo com que cresça e renove suas forças para não ser ultrapassado, ou você procura viver na semi-clandestinidade, fiel ao princípio (e não aos princípios) e arca com o prejuízo, incluindo o maior deles: o de ter verdadeiros tesouros sendo apreciados por alguns poucos.
Cakoff escolheu o lado mais democrático e difícil.
Esse lado empreendedor fez com que aumentasse a antipatia por ele em alguns círculos. Bobagem, claro, mas o fato é que não sabemos muito bem como lidar com pessoas que são bem sucedidas e trabalham muito num país que ainda beira a miserabilidade e que inspira o oba-oba carnavalesco.
O crítico e jornalista tinha sempre muitas histórias para contar, em livros sobre a mostra ou sobre o amor pelos filmes, nos pequenos jornais da mostra que circulavam até pouco tempo, em inúmeras entrevistas e nos produtos derivados de sua marca, a Mostra (sessões na TV, lançamentos em cinema e DVD, livros).
Numa das edições do Jornal da Mostra, sob o título "O eterno humor zombeteiro do mestre Buñuel - Parte 2", a história que Cakoff conta no meio de um texto é sensacional (o texto também foi publicado no jornal Valor Econômico, em 2003).
Estava ele na companhia do grande diretor espanhol Luis Buñuel, andando pela Croisette durante o Festival de Cannes de 1971.
Como sua narrativa é saborosa, melhor deixar o leitor com suas próprias palavras:
"É quando avistamos um vulto alto de mulher, sozinha, vindo em nossa direção. Não há mais ninguém andando por aquela hora da manhã. Mais um pouco e reconhecemos a figura que se aproxima: Glenda Jackson!
O nosso silêncio fica ainda mais tenso. Cruzamos com Glenda, abrimos caminho, Buñuel de um lado, eu do outro, ela pelo meio, sem nenhum sinal de reconhecimento da sua parte. O silêncio continua por mais uma boa distância até que Buñuel não se contém, me segura forte pelo braço e pára para soltar a sua máxima lapidar:
'Que és fea, és... Pero me habla al carajo...'"
Uma outra história fascinante é narrada em um livro cheio delas.
Cakoff conta que visitou Fellini durante uma filmagem na Cinecittá, o lendário estúdio italiano. Uma vez lá, acabou participando como figurante de Ginger e Fred.
Pode ser visto na plateia do programa de TV para o qual os personagens do título dançam. Tornou-se, por dois dias, um personagem felliniano.
Mas é na realização das várias edições da Mostra que aconteceram o maior número de relatos curiosos ou emblemáticos de sua luta pelo cinema autoral e pelo exercício da cinefilia.
Como quando se separou do MASP, depois de sete anos de parceria, e teve que providenciar a edição de 1984 num escritório improvisado na prefeitura, por intermédio e gentileza de Gianfrancesco Guarnieri, então Secretário Municipal de Cultura.
Nesse mesmo ano conseguiu, por meio da lábia de um experiente advogado, o fim da censura prévia dos filmes que seriam exibidos.
Poucos dias depois seu mandado de segurança foi cassado.
A Mostra foi interrompida por quatro dias até que os censores vissem trechos de todos os filmes que haviam chegado.
Tais acontecimentos - e muitos outros - são contados pelo próprio Cakoff no delicioso livro "Cinema sem fim: A história da Mostra - 30 anos" (Imprensa Oficial).
Como programador, curador, distribuidor e exibidor, sem esquecer seu lado cinéfilo, Cakoff sempre conservou o pensamento rápido de um jornalista.
Ao ser perguntado por Antonio Abujamra, no programa "Provocações", se ele era um escravo da imagem, respondeu certeiro: "não, pelo contrário, a imagem me liberta".
Envolvia-se em polêmicas bobas como quando reclamou do desprezo dos críticos brasileiros pelos filmes de Claude Lelouch exibidos na edição de 2007 (desprezo que, por sinal, acompanha a carreira desse diretor desde o início).
Mas envolvia-se nelas porque sua paixão desmedida pelo cinema fazia com que lutasse por aqueles que considerava injustiçados.
E porque em algum momento parecia esquecer que em um evento com mais de 300 filmes, quem consegue ver 1/3 deles é mágico ou não precisa de sono.
O melhor presente que podemos lhe dar, para que descanse em paz, é trabalharmos todos - críticos, jornalistas, espectadores casuais e cinéfilos, sem esquecer dos funcionários que trabalham por seus intentos - para que a Mostra continue bombando e alimentando nossos corações e mentes dessa arte tão bela e sempre tão ameaçada.
Leon Cakoff plantou essa semente com tamanhos poderes que não nos parece possível vê-la enfraquecida.
Em algum lugar do cosmos, ele estará vibrando com os filmes exibidos, refletindo conosco os rumos do cinema.
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Leon Cakoff morreu nesta sexta (14), aos 63 anos.
Ele vinha lutando contra o câncer desde 2002.
O velório do criador da Mostra de Cinema de São Paulo será no MIS (Museu da Imagem e do Som), a partir das 17h e vai até 12h de sábado (15).
Seu corpo será cremado no Memorial Parque Paulista, em Embu das Artes, cidade ga Grande São Paulo.
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Texto Base: Sérgio Alpendre - UOL
Redação Final: Cláudio Nóvoa
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