Durante décadas, o tema da perseguição nazista aos homossexuais durante o Terceiro Reich foi varrido para debaixo do tapete e raras indenizações foram pagas.
Rudolf Brazda, que pode ser o último homem gay vivo que sobreviveu ao terror, conta sua história de vida num livro recém-publicado.
AFP
Turistas caminham pelo Memorial do Holocausto, em Berlim - Alemanha
Com o corpo emagrecido e a boca sem dentes com maxilar caído, Rudolf Brazda é só pele e osso. Então veio o grito – um lamento alto que se tornou um gemido e depois gradualmente desapareceu. Brazda está deitado em sua cama de hospital, esperando por um médico. Ele grita, sussurra e fica em silêncio, alternadamente. Os minutos se arrastam, quinze minutos, meia hora. Às veze ele diz alguma coisa e depois fica quieto novamente.
Quando ele fala, diz frases como: “estou muito velho para viver”, “estou esperando o tempo passar”, “eu simplesmente não quero mais isso!” ou “tudo é uma merda”.
A porta do quarto 8411 se abre. Preocupado com a condição do paciente idoso, uma enfermeira do Hospital Emile Muller na cidade de Mulhouse na Alsácia veio para checar Brazda. Ela não fala nada de alemão e ele mal fala algum francês, então eles se comunicam fazendo expressões faciais um para o outro. A enfermeira levanta as sobrancelhas para perguntar, e o paciente sacode a cabeça. Ele então pisca e ela sorri. Não é nada grave.
“Seu comediante”, diz ela, brincando com ele em francês. Sempre comediante e charmoso, Brazda sorri de volta. Foram exatamente essas características que o ajudaram a enganar a morte quando era prisioneiro no campo de concentração de Buchenwald.
Acredita-se que Brazda, de 98 anos, seja o último homem gay vivo que pode recontar como era viver como um homossexual durante o Terceiro Reich. Ele é um homem que também consegue se lembrar da perseguição, dos procedimentos legais contra gays, da punição e do assassinato de seus amigos. Mas ele também se lembra de como era fazer sexo num campo de concentração e como se sentiu ao ser libertado.
Der Spiegel
Rudolf Brazda no final dos anos 30, e em 2011
6 mil homens gays foram assassinados na época de Hitler
Brazda guardou o passado para si mesmo durante muitos anos. Nas últimas cinco décadas, ele trabalhou instalando telhados, construiu sua própria casa e morava junto com seu parceiro na região francesa da Alsácia perto da fronteira com a Alemanha. Há alguns anos, ele enterrou seu parceiro lá, também. Ele não pensou muito sobre os nazistas durante os últimos 50 anos. Mas em 2008, aos 95, Brazda foi confrontado com seu passado quando viu no noticiário uma matéria sobre um novo memorial dedicado aos sobreviventes homossexuais da época da perseguição nazista no parque Tiergarten em Berlim.
“Nós achávamos que não havia mais nenhum (sobrevivente homossexual), achávamos que todos estavam mortos”, diz Uwe Neumärker, diretor do Memorial do Holocausto de Berlim. O memorial compreende 2.711 placas de concreto em homenagem aos 6 milhões de judeus mortos durante o Holocausto. Neumärker também é responsável por outro memorial localizado do outro lado da rua. Escondido entre árvores, ele traz uma placa quase idêntica às do memorial principal. Ela foi colocada lá em honra da memória das vítimas homossexuais da perseguição nazista.
Mas o memorial também foi fonte de preocupações para Neumärker. Foram realizados ataques contra o local, e o memorial também é tema de uma disputa corrente sobre o que exatamente ele pretende honrar. Ele deve ser um memorial lembrando os cerca de 6 mil homens gays assassinados na época de Hitler? Ou também deveria honrar a memória das lésbicas, muito embora elas não tenham sido obrigadas a ir para os campos de concentração?
Quando Brazda chegou ao local em Berlim, era como se um fantasma do passado aparecesse, embora um fantasma muito agradável. “De repente, este velhinho simpático apareceu do nada”, lembra-se Neumärker da visita que Brazda fez ao memorial em Berlim durante o verão de 2008. O nonagenário alegre ficou satisfeito com toda a atenção, as câmeras e buquês de flores. Ele também flertou sem pudores com o prefeito declaradamente homossexual de Berlim, Klaus Wowereit. Fotos tiradas durante a visita mostram Wowereit acariciando o cabelo de Brazda em frente ao memorial – um atrasado gesto de desculpas para um homem que tem quase 100 anos.
San Francisco Sentinel
O prefeito de Berlim, Klaus Wowereit, acaricia o cabelo de Rudolf Brazda, no Mamorial do Holocausto em Berlim - verão de 2008
Visitando seu quarto de hospital agora, alguém adoraria fazer a Brazda mais perguntas sobre seu passado e como ele se sente hoje. Ele acordou de uma soneca breve e está comendo um pedaço de torta de damasco. Lá fora o dia está bonito, o sol está brilhando e uma carta de Wowereit acaba de chegar - Wowereit sentiu muito que Brazda tivesse de cancelar uma viagem recente a Berlim. Brazda termina de ler a carta e a beija, com o rosto brilhando.
Refúgio em fotos
Brazda é quase completamente surdo, e tem dificuldade para entender as perguntas. Mas ele ainda enxerga bem, e a melhor forma para alguém que o está entrevistando fazê-lo falar é mostrar-lhe fotos do passado. Fotografias de sua casa em Thuringia, da cidade de Meuselwitz, onde ele morou antes de ser preso pelos nazistas, e da piscina pública de Phönix, localizada perto de uma fábrica de carvão. Foi ali, no verão de 1933, que Brazda, com 20 anos de idade na época, conheceu seu primeiro amor. Olhar para a velha fotografia parece alegrá-lo – ele se interessa e sorri.
Sempre comediante, Brazda diz: “eu o empurrei na água para conhecê-lo”.
Em outra foto, Brazda pode ser visto posando com cinco amigos, todos bem vestidos com terno e gravata, parecendo felizes e relaxados. Na época, a vida no interior da Alemanha era aparentemente mais aberta para os homens gays do que nas cidades grandes, onde os nazistas já haviam começado sua campanha de perseguição contra os homossexuais.
“Foi uma época maravilhosa, nós nos divertimos muito”, lembra-se Brazda. Ele até organizou um casamento de brincadeira para ele e o namorado, com sua mãe e irmãos na celebração. Ninguém parecia ligar para o fato de que o jovem havia arranjado um padre falso para abençoar a união.
A caça às bruxas nazista contra os homossexuais
O casamento falso aconteceu no verão de 1934, por volta da mesma época em que Adolf Hitler ordenou o assassinato de Ernst Röhm, chefe da SA – Sturmabteilung ou Tropa de Choque – e a execução dos amigos dele na unidade paramilitar de elite. Embora a Tropa de Choque tenha desempenhado um papel chave na ascensão de Hitler ao poder, ela agora estava no seu caminho. Hitler usou a desculpa de retirar os homossexuais da hierarquia nazista como uma forma de se livrar de Röhm e seus seguidores - ou mesmo de oponentes que ele considerava uma ameaça ao seu poder.
Logo depois, a caça às bruxas nazista contra os homossexuais começou em grande escala. Em 2 de julho, o Meuselwitzer Tageblatt, jornal local da cidade de Brazda, até juntou a atividade homofóbica denunciando os chamados “garotos da luxúria” na SA. “Nosso Füher deu a ordem para o extermínio sem misericórdia dessas feridas purulentas”, escreveu o jornal.
A perseguição nazista começa
Brazda continuou com sua vida cotidiana como se nada tivesse acontecido – ou pelo menos ele tentou. Nessa ponto, ele tinha ido morar com o namorado, e eles andavam de mãos dadas em público e iam a festivais de vilarejos e no mercado anual de verão com seus outros amigos gays. Se os moradores locais os olhassem de forma desaprovadora, Brazda e seus amigos fingiam ser um time de futebol especialmente alegre.
Mas Brazda só parece se lembrar de partes da história quando olha para as fotos do verão de 1934 – as partes boas. Ele tem falhas na memória. Um dos poucos amigos que Brazda ainda reconhece, Alexander Zinn, está sentado ao lado da cama de Brazda no hospital e ajudando com a entrevista, gritando as perguntas da reportagem no ouvido de Brazda enquanto mostra a ele as velhas fotos. Zinn, escritor e sociólogo, conheceu Brazda há três anos. Ele já era velho na época, mas ainda cheio de energia. O escritor estava pesquisando a história de Brazda quando encontrou a ficha criminal do julgamento do sobrevivente no campo de concentração. Os dois homens então viajaram juntos para Meuselwitz e para o antigo campo de concentração em Buchenwald.
“Eu sempre fui abençoado com boa sorte”, disse Brazda a seu novo amigo. Zinn usou isso como o título de seu novo livro sobre a vida de Brazda.
Abençoado com boa sorte? No Natal de 1936, o último que passaram juntos, Brazda deu a seu namorado um grande coração de chocolate. Enquanto os dois celebravam a data, a polícia e promotores públicos estavam ocupados apertando o nó. Na época os nazistas haviam livrado as grandes cidades das “feridas purulentas”, então voltavam sua atenção para suprimir a homossexualidade no interior. Sua estratégia era prender os gays de Meuselwitz, interrogá-los e fazer com que eles dessem depoimentos incriminando uns aos outros.
Em 8 de abril de 1937, Brazda finalmente foi pego pelo laço da polícia. Primeiro, ele insistiu que não era “atraído por homens de forma alguma'. O oficial que investigava o caso de Brazda, entretanto, observou que o acusado demonstrou “a aparência típica de um homem com tendências homossexuais”. Oficiais também apresentaram outras “provas” como cartas e poemas de amor.
O “batalhão de punição” de Buchenwald
Depois de um mês sob custódia, Brazda finalmente desatou a chorar e confessou seus “crimes”. Pouco tempo depois, ele foi sentenciado a seis meses de prisão porque, de acordo com o veredicto, “apaixonou-se por seu amigo” em vez de “superar suas vontades não naturais”.
Quatro anos depois, os nazistas prenderam Brazda uma segunda vez, e em agosto de 1942, ele foi mandado para o campo de concentração de Buchenwald. O livro de Zinn, recém-publicado em alemão, é cheio de histórias loucas que Brazda contou-lhe sobre a vida no campo de concentração alguns anos antes, quando ele ainda estava lúcido o suficiente para contá-las. Quase todos os prisioneiros homossexuais chegavam no chamado “batalhão de punição”, onde eram submetidos a um trabalho excessivamente forçado. Separados do resto do campo por arame farpado, eles começaram a trabalhar na pedreira na primeiras horas da manhã. “O extermínio pelo trabalho” era a estratégia da SS para os prisioneiros homossexuais.
Mas Brazda foi poupado. Ele foi notado por um prisioneiro político que trabalhava como “Kapo”, internos do campo nomeados pela SS para supervisionar as equipes de trabalho na pedreira. O homem que era temido por sua brutalidade pelos outros prisioneiros disse para Brazda para “largar sua picareta”. Depois disso, Brazda pode trabalhar nos barracões médicos e cuidar de ferimentos e machucados.
“Um dia eu estava sozinho na clínica quando o Kapo entrou”, disse Brazda. “Ele me abraçou e me beijou – suas mãos estavam por todo o meu corpo”. Brazda deixou o Kapo fazer o que queria para escapar da pedreira e de uma lenta morte por exaustão.
Ostracismo para os gays depois da guerra
Depois de trabalhar como atendente médico por um tempo, ele conseguiu um emprego como construtor de telhados, e então foi transferido para o escritório administrativo do campo. Mesmo enquanto as tropas norte-americanas avançavam para cada vez mais perto do campo e as tropas da SS enviavam 28 mil prisioneiros do campo para uma marcha da morte no começo da primavera, a boa sorte de Brazda nunca o abandonou.
“Eu tinha um amigo, um Kapo, que me escondeu nas pocilgas”, disse Brazda. Em 11 de abril, o exército norte-americano libertou o campo. Depois disso, Brazda se mudou para Mulhouse, na França, onde ainda vive hoje.
Neumärker, do Memorial do Holocausto de Berlim, diz que pensou muito em Brazda desde que ele se apresentou em 2008. De repente havia uma face que podia ser conectada ao seu memorial para os gays.
“A coisa mais trágica em relação a este grupo de vítimas é o fato de que, depois que foram perseguidas pelos nazistas, foram submetidas a outra forma de ostracismo depois da guerra”, diz Neumärker. Nem Brazda, nem a maioria dos homossexuais sobreviventes da perseguição nazista receberam indenizações depois de 1945.
No ano passado, uma comissão em Berlim ficou ocupada com a tarefa de tentar determinar o futuro do memorial. A solitária placa de concreto tem uma pequena janela pela qual os visitantes podem ver um vídeo no qual dois jovens da Alemanha moderna se beijam.
Uma atualização do memorial
Agora a comissão quer um vídeo diferente para o memorial, um que seja mais inclusivo do que dois homens se beijando. A comissão fez uma competição e recebeu 13 propostas antes de selecionar cinco finalistas para a rodada final de tomada de decisão. Depois de meses de controvérsias e consultas, a comissão finalmente decidiu. Ela concordou que o novo vídeo também deveria mostrar casais de lésbicas se beijando.
“O memorial precisa ser contemporâneo”, disse Neumärker.
Outros criticaram os planos de incluir lésbicas. O biógrafo de Brazda - Zinn - disse à agência de notícias AFP em 2010 que o plano de mostrar lésbicas é uma retratação equivocada da história. “A verdade histórica precisa ser o foco”, disse ele, uma vez que nenhuma lésbica foi alvo do Holocausto.
Brazda não tem certeza sobre o que deve pensar sobre o debate do memorial. “As pessoas precisam saber que nós homossexuais fomos perseguidos”, diz ele, fazendo uma pausa de efeito, “por pessoas que também eram gays.”
Brazda ficou cansado. Ele olha para Zinn, reúne um pouco de energia e começa a flertar novamente. “Eu gostaria que tivéssemos tido algo”, diz ele para o homem que é quase 60 anos mais novo. Então sorri e acrescenta: “Sempre que eu estiver no clima para o amor, pensarei em você.”
Quando Zinn visitou Brazda pela primeira vez na região de Alsácia na França, há três anos, Brazda estava tão entusiasmado e tão solitário – a maioria de seus amigos já havia morrido – que passou uma mão de tinta fresca em sua casa para a ocasião. Toda a atenção, o memorial e agora o livro foram como se assumir pela segunda vez para Brazda.
“Você tem medo da morte?”, Zinn grita no ouvido dele. Brazda está perdido em seus pensamentos e não responde imediatamente.
“Todos viveram sua própria vida, e eu vivi a minha”, ele respondeu. “O principal é ser feliz”. Ele diz que aprecia a liberdade da qual os jovens desfrutam hoje. “Todos são livres para fazer o que quiserem.”
Chega a hora de terminar a visita e dizer adeus.
“Aconteça o que acontecer”, diz ele, “não tenho medo”.
Então fecha os olhos de novo e adormece.
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Matéria do jornalista Frank Hornig para a revista alemã Der Spiegel, e traduzida brilhantemente por Eloise De Vylder
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