Encontro Gilles Jacob no jantar em homenagem a Pedro Almodóvar.
Ele está há 33 anos à frente do Festival de Cannes como 'délégué général'
(haja acentos intocáveis no francês; e nós, de pato, na reforma ortográfica com os portugueses).
Digo-lhe que este é o meu 40º Festival de Cannes e que esta foi a minha escola de cinema.
"Temos que tomar cuidado com alguns mestres", diz, enigmático, ao pé do meu ouvido. No dia seguinte, 12 conselheiros do festival iriam se reunir para tratar do anúncio de 'persona non grata' ao dinamarquês Lars Von Trier por suas chocantes declarações simpáticas a Hitler e ao nazismo.
Desde 1971 busco cineastas à frente do seu tempo.
Fomos privilegiados naquele ano com os produtos de Maio de 1968.
O cinema autoral ganhava força, e os cinéfilos lotavam as salas para decifrá-los.
A censura se esbaldava por todo o mundo.
Que história era aquela de um cinema à frente do seu tempo?
Mal saídos do impacto de "O Conformista" (1970), de Bernardo Bertolucci, viria o choque de Stanley Kubrick, no fim do ano seguinte, com "Laranja Mecânica".
Michel Ciment, o mais sólido e histórico critico da França, registrou esse impacto no filme "Era Uma Vez... Laranja Mecânica", codirigido por Antoine de Gaudemar, e com uma lição de cinema com o ator Malcolm McDowell, como anualmente se repete durante o festival.
De novo, Kubrick foi lembrado como um pensador à frente do seu tempo.
Ciment reforçou essa ideia dizendo que Kubrick ainda dava lições de cinema às novas gerações por ser capaz de resumir, em apenas 30 segundos, uma sequência de sexo que ainda leva constrangedores minutos de duração nos filmes contemporâneos.
O 3D pode ser a nova linguagem de vanguarda.
Mas é de Michel Ciment a melhor frase de confronto entre cinema americano e independente:
"Esta é uma guerra perdida", ele disse.
"Os americanos podem se permitir as maiores cretinices no cinema e fazer sucesso. Nós, independentes, se fizermos a mesma coisa, seremos massacrados por toda a crítica."
Wim Wenders e o seu novo filme em 3D, "Pina Bausch", encoraja até a Pedro Almodóvar. No jantar, em conversa com um grupo de jornalistas da TV espanhola, o diretor confessou também a vontade de produzir seu novo filme em 3D.
Almodóvar cita, inebriado, a frase de Bertolucci, dita pouco antes de ser premiado com a Palma de Ouro pela carreira:
"Um cenário, dois personagens... 3D".
Na ocasião, Bertolucci fez ainda piada dizendo que de tanto usar o Dolly (base para empurrar a câmera em movimento contínuo), agora era um Dolly-man por estar preso a uma cadeira de rodas.
Perdi a conexão Roma-Nice, rumo a Cannes, mas tive a sorte de encontrar Bertolucci na santa paz com o seu destino, depois de duas cirurgias mal sucedidas na coluna. Ele já aceita o fato e quer estar de bem com a vida. Olha concentrado para a minha cabeça e pergunta que cicatriz é aquela.
Tumor no cérebro, lhe digo.
Olha mais de perto e sentencia: "Você deve pensar muito, é por isso!".
Rebato de pronto: "É culpa dos seus primeiros filmes, eles é que me fizeram pensar tanto!"
Ele devolve com um sorriso inesquecível: "Ogni tanto siamo sopravviventi" (De tanto em tanto, sobrevivemos).
Enquanto, com os recursos do 3D,as coisas saem da tela, de todos os filmes vistos nesta 64ª edição de Cannes, o que mais me deu vontade de entrar na tela e interagir com os seus personagens foi o austríaco "Michel", do estreante Markus Schleinzer. Uma sensação esquecida desde "A Rosa Púrpura de Cairo" (Woody Allen, 1985).
Queria acabar com o sofrimento de um menino de dez anos, sequestrado e abusado sexualmente pelo seu raptor.
Entrar nos filmes é um privilégio que raras obras permitem.
Dependem de roteiros bem pensados e respeitosos com seus espectadores.
Já que é uma guerra perdida, caprichá-los é vital.
O finlandês Aki Kaurismaki ("Le Havre") consegue isso com toque de Midas.
Cada personagem seu irradia humanidade e esperança.
"Não é verdade", ele rebate, de cerveja na mão, e bem alto, na sua festa a beira-mar.
"Cerveja não é ouro..."
O italiano Paolo Sorrentino ("This Must Be the Place"), em seu primeiro filme americano uma homenagem a "Paris Texas", de Wim Wenders, faz brilhar Sean Penn em um de seus melhores papeis.
Lembro-me de Sorrentino sumido na Mostra, em São Paulo, com o filme "L'uomo in Più", dizendo que o hotel Crowne Plaza o inspirara para escrever seu segundo roteiro ("L'amico di Famiglia"), logo selecionado para Cannes.
No filme seguinte, "Il Divo", recebeu o Prêmio do Júri.
Outro roteiro extraordinário veio neste ano do inspirado cineasta turco Nuri Bilge Ceylan.
Um "road movie" sombrio e pegajoso como um Dostoiévski.
E, por fim, "A Fonte das Mulheres", do francês Radu Mihaileanu, fugido do regime de Ceausescu, revelado na 22ª Mostra com "Trem da Vida", primeiro filme a ousar tratar do holocausto com humor.
Num universo machista, das montanhas agrestes do Marrocos, sai de "A Fonte das Mulheres" a frase que fica.
As mulheres resolvem fazer greve de sexo para obrigar seus homens a tomar atitudes, tirá-los da indolência, do conformismo e das interpretações equivocadas sobre o alcorão.
Um professor quer também que os seus alunos progridam e deixem a aldeia para continuar estudando.
Mas os obscurantistas impõem obstáculos.
Os conflitos evidentemente explodem, como temos assistido no norte da África e no Oriente Médio pelo fim das tiranias.
O professor desabafa na sua inocente reação: "Eu só quero que eles pensem por conta própria..."
Um pensador à frente do seu tempo.
E a censura, enquanto o cinema fará pensar, terá seus algozes.
A frase que fica é do professor primário de Radu Mihaileanu.
Mas as imagens dolorosas são as do iraniano Jafar Panahi, em prisão domiciliar e com um pêndulo sobre a sua cabeça: ameaça de seis anos de prisão e 20 anos sem mais filmar.
Ele corajosamente documenta isso com "Isto Não é um Filme", codirigido pelo amigo Mojtaba Mirtahmasb, usando iPhone e câmera digital, depois de perceber uma brecha na censura não faz restrições se ele for o seu próprio ator ou ler o seu próprio roteiro.
O filme chegou clandestinamente a Cannes em arquivo com senha codificada.
A censura atrapalha, mas sai derrotada como sempre. O cinema segue em frente.
*****
Secretaria de Cultura de SPLeon Cakoff é crítico, cineasta e diretor da Mostra Internacional de Cinema de SP
Ele está há 33 anos à frente do Festival de Cannes como 'délégué général'
(haja acentos intocáveis no francês; e nós, de pato, na reforma ortográfica com os portugueses).
Digo-lhe que este é o meu 40º Festival de Cannes e que esta foi a minha escola de cinema.
"Temos que tomar cuidado com alguns mestres", diz, enigmático, ao pé do meu ouvido. No dia seguinte, 12 conselheiros do festival iriam se reunir para tratar do anúncio de 'persona non grata' ao dinamarquês Lars Von Trier por suas chocantes declarações simpáticas a Hitler e ao nazismo.
Desde 1971 busco cineastas à frente do seu tempo.
Fomos privilegiados naquele ano com os produtos de Maio de 1968.
O cinema autoral ganhava força, e os cinéfilos lotavam as salas para decifrá-los.
A censura se esbaldava por todo o mundo.
Que história era aquela de um cinema à frente do seu tempo?
Mal saídos do impacto de "O Conformista" (1970), de Bernardo Bertolucci, viria o choque de Stanley Kubrick, no fim do ano seguinte, com "Laranja Mecânica".
Michel Ciment, o mais sólido e histórico critico da França, registrou esse impacto no filme "Era Uma Vez... Laranja Mecânica", codirigido por Antoine de Gaudemar, e com uma lição de cinema com o ator Malcolm McDowell, como anualmente se repete durante o festival.
De novo, Kubrick foi lembrado como um pensador à frente do seu tempo.
Ciment reforçou essa ideia dizendo que Kubrick ainda dava lições de cinema às novas gerações por ser capaz de resumir, em apenas 30 segundos, uma sequência de sexo que ainda leva constrangedores minutos de duração nos filmes contemporâneos.
O 3D pode ser a nova linguagem de vanguarda.
Mas é de Michel Ciment a melhor frase de confronto entre cinema americano e independente:
"Esta é uma guerra perdida", ele disse.
"Os americanos podem se permitir as maiores cretinices no cinema e fazer sucesso. Nós, independentes, se fizermos a mesma coisa, seremos massacrados por toda a crítica."
Wim Wenders e o seu novo filme em 3D, "Pina Bausch", encoraja até a Pedro Almodóvar. No jantar, em conversa com um grupo de jornalistas da TV espanhola, o diretor confessou também a vontade de produzir seu novo filme em 3D.
Almodóvar cita, inebriado, a frase de Bertolucci, dita pouco antes de ser premiado com a Palma de Ouro pela carreira:
"Um cenário, dois personagens... 3D".
Na ocasião, Bertolucci fez ainda piada dizendo que de tanto usar o Dolly (base para empurrar a câmera em movimento contínuo), agora era um Dolly-man por estar preso a uma cadeira de rodas.
Perdi a conexão Roma-Nice, rumo a Cannes, mas tive a sorte de encontrar Bertolucci na santa paz com o seu destino, depois de duas cirurgias mal sucedidas na coluna. Ele já aceita o fato e quer estar de bem com a vida. Olha concentrado para a minha cabeça e pergunta que cicatriz é aquela.
Tumor no cérebro, lhe digo.
Olha mais de perto e sentencia: "Você deve pensar muito, é por isso!".
Rebato de pronto: "É culpa dos seus primeiros filmes, eles é que me fizeram pensar tanto!"
Ele devolve com um sorriso inesquecível: "Ogni tanto siamo sopravviventi" (De tanto em tanto, sobrevivemos).
Enquanto, com os recursos do 3D,as coisas saem da tela, de todos os filmes vistos nesta 64ª edição de Cannes, o que mais me deu vontade de entrar na tela e interagir com os seus personagens foi o austríaco "Michel", do estreante Markus Schleinzer. Uma sensação esquecida desde "A Rosa Púrpura de Cairo" (Woody Allen, 1985).
Queria acabar com o sofrimento de um menino de dez anos, sequestrado e abusado sexualmente pelo seu raptor.
Entrar nos filmes é um privilégio que raras obras permitem.
Dependem de roteiros bem pensados e respeitosos com seus espectadores.
Já que é uma guerra perdida, caprichá-los é vital.
O finlandês Aki Kaurismaki ("Le Havre") consegue isso com toque de Midas.
Cada personagem seu irradia humanidade e esperança.
"Não é verdade", ele rebate, de cerveja na mão, e bem alto, na sua festa a beira-mar.
"Cerveja não é ouro..."
O italiano Paolo Sorrentino ("This Must Be the Place"), em seu primeiro filme americano uma homenagem a "Paris Texas", de Wim Wenders, faz brilhar Sean Penn em um de seus melhores papeis.
Lembro-me de Sorrentino sumido na Mostra, em São Paulo, com o filme "L'uomo in Più", dizendo que o hotel Crowne Plaza o inspirara para escrever seu segundo roteiro ("L'amico di Famiglia"), logo selecionado para Cannes.
No filme seguinte, "Il Divo", recebeu o Prêmio do Júri.
Outro roteiro extraordinário veio neste ano do inspirado cineasta turco Nuri Bilge Ceylan.
Um "road movie" sombrio e pegajoso como um Dostoiévski.
E, por fim, "A Fonte das Mulheres", do francês Radu Mihaileanu, fugido do regime de Ceausescu, revelado na 22ª Mostra com "Trem da Vida", primeiro filme a ousar tratar do holocausto com humor.
Num universo machista, das montanhas agrestes do Marrocos, sai de "A Fonte das Mulheres" a frase que fica.
As mulheres resolvem fazer greve de sexo para obrigar seus homens a tomar atitudes, tirá-los da indolência, do conformismo e das interpretações equivocadas sobre o alcorão.
Um professor quer também que os seus alunos progridam e deixem a aldeia para continuar estudando.
Mas os obscurantistas impõem obstáculos.
Os conflitos evidentemente explodem, como temos assistido no norte da África e no Oriente Médio pelo fim das tiranias.
O professor desabafa na sua inocente reação: "Eu só quero que eles pensem por conta própria..."
Um pensador à frente do seu tempo.
E a censura, enquanto o cinema fará pensar, terá seus algozes.
A frase que fica é do professor primário de Radu Mihaileanu.
Mas as imagens dolorosas são as do iraniano Jafar Panahi, em prisão domiciliar e com um pêndulo sobre a sua cabeça: ameaça de seis anos de prisão e 20 anos sem mais filmar.
Ele corajosamente documenta isso com "Isto Não é um Filme", codirigido pelo amigo Mojtaba Mirtahmasb, usando iPhone e câmera digital, depois de perceber uma brecha na censura não faz restrições se ele for o seu próprio ator ou ler o seu próprio roteiro.
O filme chegou clandestinamente a Cannes em arquivo com senha codificada.
A censura atrapalha, mas sai derrotada como sempre. O cinema segue em frente.
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Secretaria de Cultura de SPLeon Cakoff é crítico, cineasta e diretor da Mostra Internacional de Cinema de SP
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