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Christian Rizzi/Gazeta do Povo/AE
Carlos Eduardo Sundfeld Nunes, 24, assassino confesso do cartunista Glauco Vilas Boas e de seu filho Raoni
Ele era alto e tinha olhos verdes, características que me chamaram a atenção logo de cara. Bonito e com cara de bom moço, nossos olhares se cruzaram numa ensolarada tarde de sábado e como costumava ser eu logo pensei se tratar de uma paquera. Uma vez ouvi alguém dizer que o olhar era o limite da aproximação entre dois homens e ao nos olharmos novamente tive certeza que estávamos sim nos paquerando. Nos aproximamos numa dança sincronizada de olhares, sorrisos e expressões indefectíveis ao mundo externo.
- Prazer, fulano...
- Prazer, ciclano...
Começava ali uma saga, um resgate cármico. Papo envolvente num olhar penetrante e o que só recentemente disgnostiquei como inteligência sinopse, passamos a conversar como se fôssemos amigos de infância. Falamos sobre arte e cinema, eu achava bacana dizer que gostava do muitas vezes chatíssimo cinema europeu e criticar o americano, ele falou o nome de alguns diretores e filmes que eram novidade e que hoje encaro óbvios, falamos um pouco sobre futebol, eu corintiano cor-de-rosa e ele são-paulino bege degradé, eu aos 23 já sabia lucidamente que era gay e não escondia nada de ninguém em casa, ele tinha 26 e me falou de uma ex-namorada e de uma filha de uns poucos meses, e também de uma mãe esquizofrênica e pai viciado em jogos, eu trabalhava com tecnologia e automação e ele havia sido exonerado do corpo de bombeiros, era agora funcionário público e estava naquela festa assim como eu, prestigiando um amigo.
Fiquei encantado, por completo. Achei meu príncipe encantado... Na verdade ficamos, mas só mais tarde soube disso. Trocamos telefone por precaução e saímos em grupo pra uma pizzaria, nos sentamos em cantos opostos numa mesa enorme e flertamos por toda a noite. Horas depois nos despedimos como cabia a dois homens nos anos 90, com um singelo aperto de mão e um olhar de profundo desejo.
Nos falamos no domingo. Ele me ligou também na segunda, na terça e na quarta nos vimos. Me convidou pra um cinema, escolhi um filme de temática gay, "Essa estranha atração", fiquei na minha, embora achasse estranho um homem supostamente heterossexual convidar um gay recém conhecido pra cinema e escancarei meu interesse na escolha do filme. Homem heterossexual vai ao cinema com a namorada, pensava eu. Saímos em silêncio, como se algo nos perturbasse, cada um pra um lado do metrô. Não nos falamos na quinta, nem na sexta e nem no sábado.
Me ligou no domingo, disse que precisava falar comigo urgentemente. Nos encontramos e achei sua reação nada convencional, uma perturbada agressividade contida, um desencontro entre o que se pensava e o que se sentia, uma agitação que depois soube estar relacionada ao uso de cocaína. Na época eu era ignorante quanto ao assunto drogas.
Ficamos conversando algumas horas, tomamos uma sopa e ele se declarou apaixonado., disse que queria namorar comigo se eu prometesse ficar velhinho ao seu lado. Mas antes disse que tinha que me contar algumas coisas sobre a sua Vida, uns podres como ele mesmo disse, contou que tinha sido garoto de programa, usuário e traficante de cocaína e que carregava nas costas um assassinato cometido em outro país, uma estória que me pareceu fantasiosa. Achei tudo aquilo muito estranho, mas vivia dias de auto-estima tão em baixa que paguei pra ver. O máximo que pode acontecer é não acontecer nada, pensei.
Namoramos por um ano, brigamos feio e nos separamos por três, nos encontramos e no mesmo dia voltamos a namorar, namoramos mais três, nos separamos mais três, namoramos pouco mais de dois o que nos deu um líquido de quase sete anos em doze. A cada retorno uma nova pessoa, não compreendi quando ele me contou da mãe esquizofrênica, do pai viciado em álcool e jogos, quando me explicou que ia a psiquiatra tratar-se do que chamavam nos anos 80 de psicose maníaco depressiva, o que mais tarde virou distúrbio de bipolaridade, não compreendia suas compulsões por sexo e amor, nem as cenas intensas dele vibrando com um pequeno mimo ou emburrando com uma sutil falta de atenção. Isso sem falar nas mentiras, sempre para cobrir outras mentiras ou omissões.
A cada retorno um homem mais complexo e mais complexado, uma homossexualidade mal resolvida, relações familiares estranhas, uma filha que não era filha, uma mãe que não era mãe, amigos que nunca existiram, amores que não foram reais, estórias que não se conectavam e eu me sentindo cada vez mais distante embora não conseguisse me desvencilhar. Momentos de violência, ainda que raros pois uma vez que ameaçou me bater, fui firme e disse que se me encostasse a mão iríamos pra delegacia os dois. Evidente que eu não reagiria, mas ele não era réu primário e tinha medo de ficar preso.
Olhando essa foto na internet não pude deixar de ver o mesmo olhar desse meu amante, desse cara que muito me ensinou sobre o que não conhecia de verdade: o tal do amor. Em comum a compulsão pelas drogas, uma mãe esquizofrênica, um pai com cara de bandido, o contato com um daime que só o deixou ainda mais maluco e os sentimentos confusos, os olhos verdes num olhar encantadoramente desafiador...
O meu amor hoje perambula pelas ruas da cidade, não tem mais o que se chama dignidade. Diplomado e pós graduado divide caixotes de papelão com mendigos e o que consegue de dinheiro queima em pedras de crack, faz um michê aqui e ali, cata latinhas e pratica pequenos furtos. O perigo morava ao lado, durante quase década dividi a minha cama com um psicopata em potencial Mas, ainda assim, acredito que algo mais forte que a razão nos uniu, algo que transcende ao corpo e as encrencas do cotidiano. Ainda assim era o meu amor.
Eu não posso dizer que não sinto saudade dos olhares meigos que recebi, que recebi e que muito bem me fizeram. Relacionamentos trazem crescimento e me permiti viver com intensidade cada dia ao seu lado. Como disse, olhos claros me encantam, posso pensar ver a alma através deles, mas não consigo enxergar que os maiores monstros são os que habitam o nosso ser. Não sou ninguém para julgar outro alguém, apenas escolho com quem quero caminhar.
E devo também dizer ainda que, tivesse eu cruzado olhares com esse moço, esse que semana passada matou um pai e o seu filho, não tenho noção do que teria acontecido... Como disse, olhos verdes, transparentes, me encantam...
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Tiago + Quintana escreve muito, e tem um blog no site Mix Brasil.
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