SINOPSE:
Cinebiografia disfarçada e com muitos nomes trocados do ator Arlindo Barreto, um dos mais famosos intérpretes do palhaço Bozo no programa matinal homônimo exibido pelo SBT durante a década de 1980.
Ator de pornochanchadas, Barreto alcançou a fama graças ao personagem.
Só que nunca era reconhecido pelo público, graças a uma cláusula contratual que o impedia de parecer em público como Bozo sem estar maquiado e fantasiado.
Esta frustração - de ser famoso e não ser badalado pelos fãs - o levou a se envolver com drogas, chegando a utilizar cocaína e crack nos bastidores do programa.
CRÍTICA:
Arlindo Barreto era um ator esforçado, filho de Márcia de Windsor, a jurada boazinha que sempre dava nota dez nos programas de calouros da TV brasileira nos anos 1970 e 1980.
Sonhando em ser galã de novelas, Barreto estava mesmo se virando,
nas muitas pornochanchadas que saíam que nem pão quente na boca do lixo paulistana.
Até que um palhaço americano, que Silvio Santos havia comprado os direitos para fazer no seu SBT a versão brasileira do seu programa, mudou para sempre a sua vida.
Vladimir Brichta é Augusto/Bingo - Fotos dessa Postagem: Divulgação/Warner Bros. |
Ah, os anos 80!
Um período da história fora da curva da realidade brasileira, seja pelo dia a dia, pela moda, pelos produtos culturais.
'Bingo - O Rei das Manhãs', que estreia hoje em todo o Brasil, se passa nesta época e é um belo exemplo deste cenário improvável e quase anárquico.
Afinal, vista com os olhos de hoje, a década de 80 surge quase que como uma realidade paralela, impossível de acontecer.
Em que outra época teríamos um palhaço, que dava uma audiência absurda toda manhã, atuando sob efeito de drogas e se esfregando com a então rainha do bumbum, Gretchen, enquanto ela 'canta' "Conga La Conga" em um programa feito para crianças?
O longa de Daniel Rezende conta essa e outras histórias inspiradas na vida real de Arlindo Barreto, um dos atores que interpretou o palhaço Bozo, que fez sucesso no SBT nos anos 80.
Por questões de direitos, aqui Bozo virou Bingo, Arlindo virou Augusto, TV Globo virou TV Mundial e por aí vai.
Apenas Gretchen, interpretada por Emanuelle Araújo, continuou Gretchen - afinal ela é uma instituição por si própria e não criou caso com a produção.
A história de Bozo era interessante por si só.
Emanuelle Araújo é Gretchen |
Afinal, contar a vida de alguém que é, ao mesmo tempo, uma das pessoas mais famosas do país e um completo anônimo - por contrato, ele não podia se apresentar como o palhaço a ninguém, sem estar devidamente maquiado e fantasiado - é sensacional.
E sim, é preciso coragem para retratar aquela realidade absurda de forma radical, sem concessões.
E não é que este é o principal mérito do longa, que marca a estreia na direção de Daniel Rezende, montador de obras marcantes como 'Cidade de Deus' e 'Tropa de Elite'?
Ao lado do roteirista Luiz Bolognesi ('Bicho de Sete Cabeças'), o cineasta acertadamente não suavizou a história de seu protagonista, investindo em uma trama pesada, focada no registro dos abusos de Augusto.
O longa mostra muitas sequências de consumo de drogas, mostrando bem a transição do uso para "ter um barato" para o vício, que interfere na vida pessoal e profissional do palhaço.
Até as cenas de sexo aparecem na trama como algo muito bem pensado e inserido dentro daquela realidade.
Augusto (Vladimir Brichta) é um ator que obteve certo sucesso em pornochanchadas, mas que nunca teve uma verdadeira oportunidade na TV - seu sonho era ser galã de novelas.
Ao entrar num estúdio para fazer um teste para uma novela, ele descobre que no mesmo espaço estavam testando para o papel do palhaço Bingo, protagonista de um programa infantil muito famoso nos Estados Unidos e que a emissora brasileira faria uma versão.
Augusto acaba levando o papel, mas aos poucos começa a bater de frente com a produção, que também por contrato deve seguir o roteiro como feito nos EUA - de lá, veio até um diretor para que a produção brasileira não saísse do formato - enquanto que Augusto quer criar o 'seu Bingo'.
Bingo conversa com o produtor americano que veio implantar o programa no Brasil |
Só que uma cláusula no contrato não permite revelar quem é o homem por trás da maquiagem e ele passa a enfrentar uma enorme frustração, além de se entregar às drogas e ao álcool.
O longa mostra a decadência de Augusto e como isso afeta as pessoas ao seu redor, principalmente seu filho - a grande ironia dessa história, já que Bingo é o ídolo maior de milhões de brasileirinhos.
A ótima atuação de Brichta é crucial para a alternância entre humor e drama e sua interpretação de Bingo dá vida não só ao palhaço, mas também à triste figura atrás da máscara.
Leandra Leal também aparece bem no papel da diretora do programa de TV e seu relacionamento com Augusto/Bingo é um dos grandes focos da obra.
Leandra Leal é a diretora do programa e o interesse amoroso de Augusto |
O texto de Bolognesi divide muito bem o espaço entre o lúdico e a realidade brutal, sobre a alegria em cena e o fundo do poço por trás das câmeras.
O roteiro apresenta um personagem muito complexo, com diversas camadas pessoas e profissionais.
É curiosa a forma como o filme aborda sua relação com a mãe e com o próprio filho - ambas carinhosas, mas que também acabam afetadas pela realidade de fama e loucura.
Wagner Moura foi o ator pensado para viver Bingo.
Por causa das filmagens da série 'Narcos', da Netflix, o ator deixou o papel e recomendou Brichta a Rezende - o que só prova que além de talentoso, o eterno Capitão Nascimento também poderia ser um bom responsável por casting.
E Vladimir entrega um Bingo tão complexo e tão intenso que é difícil imaginar outro nome à frente do personagem - para mim, é o melhor papel da carreira deste talentoso e versátil ator baiano.
Com boas presenças de Augusto Madeira (o produtor) e Ana Lucia Torre (a mãe), o longa é um belíssimo e raro exemplo do cinema comercial brasileiro, com pretensões narrativas e financeiras.
Ana Lúcia Torre interpreta a mãe de Augusto |
Uma produção realmente diferenciada, que se sobressai em diversos elementos de cena, em especial figurino, maquiagem e reconstituição de época.
O elenco conta ainda com Tainá Müller, Pedro Bial e Emanuelle Araújo, vivendo uma perfeita Gretchen.
No longa, temos outro belo destaque, o ator Domingos Montagner.
Falecido no ano passado e aqui num dos seus últimos trabalhos em cena, o ator vive um palhaço de circo, que serve como mentor para Bingo.
As cenas entre Montagner - que era mesmo um palhaço na vida real - e Brichta são de uma carga dramática e de um lirismo raros.
Montagner, em cena com Brichta |
Outro destaque da produção é a direção de fotografia de Lula Carvalho, especialmente a forma como investe em alguns planos-sequência muito interessantes - como o que mostra Augusto/Bingo entrando no palco pela primeira vez.
A cena é bem desenvolvida e remete às sequências pelos bastidores do teatro no premiado 'Birdman ou A Inesperada Virtude da Ignorância'.
O grande trunfo da obra é como ela captura o espírito da cultura pop no Brasil, com seu jeito nonsense, psicodélico e sem limites.
Bingo se torna o símbolo do clima de zoeira dos anos 80 e, apesar de se passar 30 anos atrás, é mais atual do que nunca.
Além disso, a busca por realização pessoal, os abusos proporcionados pela fama e a decadência são questões sempre atuais.
Daniel Rezende dirige Vladimir Brichta e Leandra Leal numa cena do longa |
Mesmo que você nunca tenha ouvido de falar de Bozo, Arlindo Barreto e não tenha vivido nos anos 80, o filme vale ser visto, pois ele mostra que o cinema brasileiro pode ter grandes filmes sem precisar se apoiar somente nos dramas densos e nem apelar para as comédias nacionais mais caricatas, que se são sucesso de bilheteria, são mais rasas que um pires.
Precisamos de mais obras espetaculares como essa, com trama relevante e diferente dos temas explorados à exaustão por aqui e, o mais importante, com preocupação com a qualidade técnica e de atuação do começo ao fim.
E sim: Daniel Rezende se superou na direção, mostrando que é um nome forte também como cineasta.
Demorou, mas finalmente uma história por trás de um marco da cultura pop brasileira ganha vida nas telonas - e de maneira espetacular.
Filmaço.
TRAILER:
FICHA TÉCNICA:
BINGO - O REI DAS MANHÃS
Gênero:
Drama
Direção:
Daniel Rezende
Elenco:
Ana Lúcia Torre, Augusto Madeira, Cauã Martins, Domingos Montagner, Emanuelle Araújo, Leandra Leal, Raul Barreto, Tainá Müller, Vladimir Brichta
Roteiro:
Luiz Bolognesi
Produção:
Caio Gullane, Fabio Gullane
Fotografia:
Lula Carvalho
Trilha Sonora:
Beto Villares
Estúdio:
Gullane Filmes
Montador:
Marcio Hashimoto
Ano:
2017
Duração:
111 Min.
Estréia:
24/08/2017
Distribuidora:
Warner Bros.
Classificação Indicativa:
16 anos
COTAÇÃO DO KLAU:
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