Ilusões armadas
FERNANDO RODRIGUES
DA SUCURSAL DA FOLHA DE S.PAULO EM BRASÍLIA
Numa viagem recente a Belo Horizonte, Dilma Rousseff encontrou uma velha amiga do colégio Sion, escola na qual cursou o ensino fundamental a partir de 1955 na capital mineira. "Ela me disse que só uma aluna da minha turma era psiquiatra, tirando também outras duas que eu conheço e seguiram carreira profissional." E o restante? "As outras todas eram donas de casa."
O Sion era um colégio de freiras. Só para meninas. Eram educadas para debutar nos bailes de 15 anos. Não que fosse uma escola fácil. Quando Dilma chegou com o uniforme azul marinho para o primeiro dia de aula, aos 7 anos, a professora escreveu um texto no quadro negro e ordenou: "Copiem".
"Eu tinha feito o jardim de infância no Isabela Hendrix. E lá não se ensinava a escrever. A gente pintava. Eu entrei no primeiro ano completamente analfabeta. E tinha uma porção de meninas de um colégio chamado 12 de Dezembro. Todas sabiam escrever. E eu, não. Minha mão suava, borrava o caderno. Eu tentava copiar como se fosse desenho sem saber o que estava copiando."
A partir desse episódio, Dilma diz ter desenvolvido "uma vontade de aprender a ler que era um horror". Foi incentivada pelo pai, o búlgaro naturalizado brasileiro Pétar Russév -cujo nome depois foi aportuguesado para Pedro Rousseff. "Ele foi uma pessoa que teve forte vínculo com todos os movimentos de transformação europeus", relatou a ministra da Casa Civil em uma das sessões de conversa que concedeu à Folha desde janeiro deste ano.
Primeiro, foram livros infantis, "uma coleção da Melhoramentos, uns livrinhos desse tamanhozinho, assim", diz Dilma, indicando que eram edições de bolso. Depois, os contos dos irmãos Grimm, os alemães que popularizaram fábulas como Cinderela, Branca de Neve e João e Maria. Mas logo as leituras foram mudando de tom. "Eu li "Germinal" aos 14 anos", diz, citando o mais famoso romance do francês Émile Zola, de 1885, conhecido pela descrição naturalista, bem crua, das condições de trabalho sub-humanas de mineiros de carvão.
"Ela teve uma formação intelectual precoce. Lia muito, de histórias em quadrinhos até Marcel Proust e Jean-Paul Sartre. Sou cinco anos mais velho, mas lembro-me dela no movimento secundarista já dando aula para futuros vestibulandos", diz Claudio Galeno Linhares, 67, que foi casado com a ministra nos anos 60.
Família
O pai de Dilma, Pedro Rousseff, veio para a América Latina na década de 30 do século passado. Viúvo, deixara um filho, Luben, na Bulgária. Passou por Salvador, Buenos Aires e acabou se instalando em São Paulo. Fez negócios na construção civil e com empreitadas para grandes empresas, como a Mannesmann.
Já estava havia cerca de dez anos no Brasil quando, numa viagem a Uberaba, conheceu a professora primária Dilma Jane Silva, nascida em Friburgo (RJ), mas radicada em solo mineiro. Casaram-se e tiveram três filhos. Igor nasceu em janeiro de 1947, Dilma, em dezembro do mesmo ano, e Zana, em 1951. A família escolheu Belo Horizonte para morar.
Levavam uma vida confortável. Passavam férias no Espírito Santo ou no Rio. Às vezes, viajavam de avião. Não era uma clássica família tradicional mineira. Os filhos não precisavam ter uma religião. Escolhiam uma fé se assim desejassem. O pai frequentava cassinos, gostava de fumar e beber socialmente.
Quando morreu, em 1962, Pedro deixou a família numa situação tranquila. Cerca de 15 bons imóveis garantem renda para a viúva Dilma Jane até hoje. Um dos apartamentos fica no centro de Belo Horizonte.
Foi exatamente esse apartamento o usado por Dilma Rousseff no final dos anos 60 para fazer reuniões com colegas militantes de esquerda e preparar ações a favor da luta armada contra a ditadura militar.
Ao terminar o ginásio, em 1963, Dilma prestou concurso para fazer o clássico em ciências sociais (um dos ramos do ensino médio daquela época). Em 1964 começou no Colégio Estadual Central. "Esse era "o" colégio de Belo Horizonte. Ali acontecia toda a agitação política estudantil da cidade", recorda-se Fernando Pimentel, 58, ex-prefeito de Belo Horizonte (2005-2008) e também ex-aluno do Estadual Central -no qual frequentava uma célula política comandada pela pré-candidata do PT ao Planalto.
Quando começou o clássico, em 1964, Dilma teve contato com militantes da esquerda organizada. "Foi a primeira vez que eu soube que as pessoas iam presas por crime de opinião", recorda-se. Em 31 de março daquele ano, o país sofreu um golpe de Estado. Uma ditadura militar se instalou.
Ao se aproximar dos grupos de esquerda, Dilma recebeu um texto para ler. "Era um livrinho. Chamava-se "Acumulação primitiva". Era um dos capítulos mais vitais do "Capital", do Marx. Li e não entendi. Aí eu perguntei o seguinte: "afinal de contas, ele é a favor dos trabalhadores ou não?'"
É raro Dilma tratar de temas mais filosóficos e não inserir uma citação literária. Sobre religião, por exemplo, fala dos romances de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), permeados do conceito de que, "se Deus não existe, tudo é permitido". Ao ser presa acusada de subversão pela ditadura militar, em 1970, sua ficha preenchida pela polícia paulista continha a inscrição "não tem religião" em um dos campos.
Hoje, a ministra contemporiza. Numa sabatina na Folha, em 2007, disse: "Fiquei durante muito tempo meio descrente. Acredito que as diferentes religiosidades são fundamentais para as pessoas viverem. A gente não pode achar que existe aquele seu Deus". Mas ela acredita em Deus? "Eu me equilibro nessa questão. Será que há? Será que não há? Eu me equilibro nela."
Militância
Egressa do Sion, Dilma tinha facilidade não apenas com literatura, mas também com matemática. No movimento estudantil secundarista, entre reuniões para discutir política e como seria a próxima passeata de protesto, a simpatizante da Polop dava aulas particulares. A Polop era como todos se referiam à Organização Revolucionária Marxista Política Operária. Mais tarde, em 1967, o grupo virou Comando de Libertação Nacional (Colina).
"O Zé Aníbal estudava no colégio Marconi e lá não tinha boa formação em matemática. Então fui eu estudar matemática com ele, na minha casa, todos os dias", diz Dilma. O Zé Aníbal que estudou com Dilma em 1966 é o deputado federal José Aníbal (PSDB-SP), à época também um simpatizante da Polop em Belo Horizonte. Os dois passaram no vestibular e entraram juntos para a Face (Faculdade de Ciências Econômicas) da UFMG.
O futuro deputado tucano teve a ajuda da futura petista não só para aprender matemática. Na primeira semana de aula, em 1967, a Polop estava tentando destronar um pouco o grupo político de esquerda AP (Ação Popular), ligado à Igreja Católica, então dominante no movimento estudantil.
Zé Aníbal foi escolhido para ser candidato a representante dos primeiranistas. "A Dilma fez muita campanha para mim. Trabalhou como cabo eleitoral. Ganhei por um voto de diferença contra o candidato da AP", relata o hoje deputado federal pelo PSDB paulista.
Ser da Polop era estar por dentro do que se passava nas principais rodas políticas e culturais de Belo Horizonte. "A Polop misturava de tudo. Tinha Lênin, Marx, Rosa de Luxemburgo e uma pitada de Trotsky. Era o grupo mais intelectualizado. O pessoal da AP rezava o dia inteiro. Os do PC do B só liam Mao Tse-Tung. A Polop era um movimento iluminista", descreve Apolo Heringer, 67, um dos gurus da esquerda belo-horizontina nos anos 60.
Não era um grupo numeroso. Basta dizer que um dos principais veículos a conduzir os militantes para cima e para baixo era um Volkswagen sedã verde abacate. O Fusca foi o presente que Zé Aníbal ganhou do pai ao entrar na faculdade. Dilma andou muito naquele fusquinha.
A verdade é que as conversas eram sobre revolução e exploração dos trabalhadores, mas "pobre, mesmo, não tinha muitos, não". A lembrança é do ex-prefeito de Belo Horizonte Fernando Pimentel. "Todos eram, pelo menos, de classe média".
Foi numa sessão de cinema, "possivelmente um filme italiano, do [Federico] Fellini", que começou o namoro entre Dilma e o jornalista Cláudio Galeno de Magalhães Linhares.
Galeno já havia estado preso e tinha habilidade com produtos químicos. Seu pai era farmacêutico. "Andaram falando que eu fabricava bombas. Não tem nada disso. Fabriquei alguns protótipos de uma caixa com um dispositivo eletroquímico. Era para guardar documentos secretos. Se a repressão abrisse, a caixa entraria em combustão", diz. Só duas dessas engenhocas foram fabricadas. Uma acabou nas mãos da polícia. Não pegou fogo. O dispositivo não estava armado.
O casamento foi em setembro de 1967, só no civil. Familiares e amigos compareceram ao cartório. "Eram 30 ou 40 pessoas. Muitos já eram procurados. Se a polícia baixasse ali levaria alguns", diz Galeno, 25 anos à época. A noiva tinha 19.
"Aparelho"
Foram morar no apartamento da família Rousseff, no centro de BH. Eram tantas as reuniões políticas que o local era considerado quase um "aparelho" da Polop e do Colina -"aparelho" era o jargão para designar os endereços para encontros das organizações proscritas pela ditadura militar.
Foi nesse apartamento que Dilma e Galeno tiveram seus últimos dias antes de cair na clandestinidade. Jorge Nahas e outros militantes foram presos em janeiro de 1969, num confronto com a polícia. Morreram dois policiais. Os organismos de repressão mineiros começaram a caçar ostensivamente os militantes de esquerda -os subversivos, como se dizia.
O casal passou a dormir em locais diferentes. "Mas daí nos disseram que alguém havia escondido microfilmes nas caixas dos interruptores de quarto do apartamento. Eram fotos de locais usados em nossos treinamentos militares", disse Galeno à Folha em entrevista neste mês, em Belo Horizonte.
Com todo cuidado, entraram a pé pela garagem. Galeno descreve: "Olhamos pela janela e vimos uma caminhonete C14 e um Aero Willys, os dois de cor preta, da polícia. Ficamos em silêncio total, sem acender as luzes. Encontramos os microfilmes que nem eu nem a Dilma sabíamos da existência. O problema era como destruí-los".
Jogar no vaso sanitário e dar a descarga faria barulho. Queimar produziria fumaça. A solução foi desenrolar um cabide de arame enfiar os microfilmes nos ralos do apartamento. "Mas você imagine a tensão... Eles não sabiam que estávamos lá. Um policial subiu e tocou a campainha. Nós vimos que era um policial pela fresta de baixo da porta, com todo cuidado. Ele usava coturnos", relata Dilma.
Foi uma noite em claro. Galeno se lembra de terem levado colchões para a sala, em frente à porta. "Era uma espécie de barricada. Se entrassem atirando nós teríamos alguma proteção inicial mínima." Por volta das 6h do dia seguinte, um barulho no corredor externo chamou a atenção. Dilma relata: "Era a empregada do vizinho esperando o elevador. Pelo olho mágico deu para ver que ela levantou a saia, coçou a coxa e ajustou a meia. Uma mulher só faria aquilo no corredor se soubesse que estava sozinha. Olhamos pela janela e os carros da polícia não estavam lá."
Clandestinidade
Era o momento da troca de turno. "Eu disse: vamos nessa", conta Galeno. Dias depois os dois já estavam no Rio, clandestinos, usando nomes falsos e pulando de casa em casa. O casamento também estava chegando ao final. Dilma ficou no Rio. O marido foi para o Rio Grande do Sul, atendendo a um chamado do Colina. No dia 1º de janeiro de 1970, ele participou de um sequestro de um avião em Montevidéu, no Uruguai, e refugiou-se em Cuba.
O ano de 1969 foi intenso para Dilma. Ela usou vários codinomes, entre os quais Luiza, Wanda, Marina, Estela, Maria e Lúcia. Conheceu seu segundo marido, o advogado gaúcho Carlos Franklin Paixão de Araújo. Quando se viram pela primeira vez, ele tinha 31 anos. Dilma estava com 21. "Sou 9 anos e 10 meses mais velho que a Dilma", calculou Araújo numa das conversas que teve com a Folha em Porto Alegre, onde mora e trabalha até hoje.
Era um comunista que conhecia União Soviética, Polônia, Checoslováquia. Havia militado ao lado de Francisco Julião nas Ligas Camponesas, no Nordeste. Algumas semanas depois de se conhecerem, no início de 1969, Araújo e Dilma já estavam vivendo juntos. "Foi uma paixão. Ela era muito linda. Ela era uma mulher muito bonita. Mesmo usando óculos." Dilma tinha 9 graus de miopia. Hoje, usa lentes de contato.
VAR-Palmares
Naquele final de anos 60, a hoje ministra participou de reuniões secretas em São Paulo e no Rio nas quais as organizações de esquerda armada iam se fundindo ou rachando conforme a ideologia do momento. "O livrinho do Régis Debray, "A revolução na revolução", colocou fogo em todos. O texto chegou mimeografado para nós, contrabandeado do Uruguai. Muitos acharam que o foquismo era a solução. Por um momento, a Dilma achou isso também", diz Apolo Heringer.
Pensador de esquerda francês, Debray morou em Cuba, conheceu Fidel Castro e Che Guevara. Difundiu a teoria do foco. Heringer, hoje um pacifista e ambientalista, descreve: "Era a tese da coluna móvel estratégica. Seria o organizador coletivo para movimentar as massas, como um motor. Atuava-se nas cidades e refugiava-se nas florestas, derrotando o Exército aos poucos, a cada combate, conquistando adesão das massas. Não tinha a menor base na realidade brasileira".
Deu-se então a fusão do Colina, de Dilma e Araújo, com a Vanguarda Popular Revolucionária, de Carlos Lamarca. A nova organização, criada em meados de 1969, chamava-se Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares).
O novo grupo falava em combater a ditadura, mas a alternativa não era propriamente democracia. Em 1970, um militante foi preso em Goiânia com um estatuto da organização. A VAR-Palmares se definia como instituição "político-militar de caráter partidário, marxista-leninista, que se propõe a cumprir todas as tarefas da guerra revolucionária e da construção do Partido da Classe Operária, com o objetivo de tomar o poder e construir o socialismo".
Quem descumprisse o cânone interno ficava sujeito a sanções de "censura, verbal ou escrita", "expulsão" e até "justiçamento" -essa pena de morte seria "aplicada por um tribunal revolucionário", e infrator poderia ou não "estar presente ou tomar conhecimento" da pena.
Treinamento militar
A associação entre Colina e VPR durou poucos meses. Lamarca queria aprofundar as ações armadas. Outros divergiam. Racharam antes do final de 1969. Mas ainda deu tempo para Dilma ir ao Uruguai clandestinamente ser treinada em técnicas militares -ela não precisa o momento exato.
Em março de 2009, à Folha, Dilma havia negado esse treinamento de forma categórica: "Nunca fiz nem treinamento no exterior nem ação armada".
Confrontada com a contradição, alega que, à época, não queria falar de atos envolvendo outros países. Resolveu fazer a revelação depois da eleição de José Mujica, ex-guerrilheiro da organização Tupamaros, que lutou contra a ditadura militar uruguaia. "O presidente Mujica está ali e sabe como é que foram os anos 70", diz Dilma.
A seguir, seu relato, inédito, sobre o treinamento militar -e não de "guerrilha", diz ela.
"Era perto daqui, no Uruguai. Geralmente a gente fazia numa fazenda. Era mais seguro você fazer na fronteira. Eu estava no Rio e fui a Porto Alegre. Foi do lado de lá da fronteira. Ia pouca gente. Na minha vez foram cinco ou seis pessoas. Eu usava uns óculos com lentes bem grossas. Eu nunca tive pontaria, mas pegava bem. Era uma ótima limpadora. O meu treinamento foi muito simplório. Não se atirava muito. Montava-se e desmontava-se [armas]. Também [havia treinamento] de segurança. Você olha como é que faz para não ser seguido. Eles chamavam de treinamento de inteligência."
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