No capítulo 32 do livro "As Aventuras de Huckleberry Finn", quando tia Sally pergunta se havia feridos num acidente com um barco a vapor, o garoto Huck responde:
"Não. Só matou um negro".
"Que sorte; porque às vezes tem gente que se machuca", diz, aliviada, a tia.
Publicado por Mark Twain (1835-1910) em 1884, o romance conquistou milhares de fãs apaixonados e também muitos detratores que o acusavam de racista.
Por conta de passagens como acima, o livro - considerado um dos melhores de todos os tempos da literatura norte-americana - ficou por anos foi proibido nas escolas dos EUA.
Quase 130 anos depois, o livro continua a provocar controvérsia: uma nova versão de "Huckleberry Finn" - que deve sair mes que vem nos EUA pela NewSouth Books - substitui a palavra "nigger" [algo como crioulo] por "slave" [escravo] - termo racial considerado pejorativo, "nigger" aparece mais de 200 vezes no livro.
Autor da ideia da troca, o professor universitário Alan Gribben disse que se sentia "constrangido" em ter que pronunciar a palavra nas aulas - o que só escancarou que Gribben pode se dizer "professor", mas não entende absolutamente nada da obra de Mark Twain.
Aqui, professores e tradutores brasileiros entraram na celeuma e foram unânimes em criticar a proposta.
"A onda do politicamente correto pode levar ao apagamento do processo histórico", diz Sandra Vasconcelos, professora de literatura na USP.
"Como professora, não posso concordar com essa 'limpeza'. O uso da palavra deve ser interpretado de acordo com o contexto."
Heloisa Helou Doca, professora de literatura americana da Universidade de Marília e autora de tese de mestrado sobre Twain, diz que o autor, na verdade, era um idealista que lutou pelos desfavorecidos, incluindo os negros.
"Twain deu luz a personagens subalternos. A intenção dele era parodiar a mentalidade racista do americano médio do século 19."
Para Doca, mais útil seria incluir notas explicativas no livro.
"O importante é mostrar ao aluno o sentido do uso do 'nigger' e outras situações que despertam polêmica."
Isabel Lyon/TheNewYork Public Library/Divulgação
O escritor e ensaísta Mark Twain (1835-1910), em foto de 1904
O caso guarda semelhanças com o de Monteiro Lobato, cuja obra "Caçadas de Pedrinho" (1933) foi no ano passado acusada - pasmem! - pelo Conselho Nacional de Educação de conter "trechos racistas".
Mas os dois autores se aproximam não apenas por terem sido alvo de julgamentos alheios a seu tempo.
Admirador de Twain, Lobato trouxe a prosa do autor americano para o Brasil na década de 30, e até hoje é considerado um dos melhores tradutores da obra do grande autor americano para o português brasileiro.
Sua versão de "Huck Finn" contém as palavras "negro", "escravo", "preto" e variantes - em uma passagem, "big nigger" vira "negrão".
Tradução mais recente do clássico - feita por Sergio Flaksman nos anos 90 - já encareta e traduz o trecho como "escravo alto", mas também usa "negro" ao longo do livro.
Sobre a alteração na nova edição americana, Flaksman disse que "me deixa indignado que qualquer editor ou revisor considere legítimo qualquer manipulação a posteriori de uma obra literária".
Tradutores fazem coro.
"É o equivalente a estuprar um livro", afirma Jorio Dauster.
"Sou contra as atualizações porque desfigura a obra de arte", conclui Ivo Barroso.
Reprodução: blog Gerinos
A onda do "politicamente correto virou uma paranóia mundial, e deve ser combatida sem tréguas
O que é uma obra de arte, senão um retrato de seu tempo?
A julgarmos pelo encaretamento mascarado de "politicamente correto", não mais, já que, para os EUA, país atualmente mais conservador e careta do mundo, voltar atrás e refazer a realidade como ela deveria ter sido - na opinião de alguns, ressalvo - não é problema.
Atentados contra a realidade acontecem há milênios: a própria história, com seu clichê "escrita pelos vencedores", não é fonte de verdade absoluta, todos sabemos.
Mas o que me espanta no caso acima descrito é que quem propôs a alteração no livro de Mark Twain é um tosco que se diz " professor universitário", e quem concordou são pessoas supostamente comprometidas com as letras, sua divulgação e liberdade de pensamento - os editores de livros.
O "professor" disse que não querer higienizar a obra de Mark Twain.
"A crítica social aguçada continua lá", opinou ele.
Evidentemente, está lá a crítica social que ele considera digna de estar lá.
Se Mark Twain escreveu "crioulo" para se referir a escravos em "As Aventuras de Huckleberry Finn" (1884), e não se usa mais essa alcunha no século 21, trata-se de prova incontestável de evolução social.
Ao censurar a palavra, o professor e a editora desrespeitam 126 anos de luta por direitos humanos, simples assim.
Essa mesquinhez histórica não é monopólio norte-americano: quando a igreja católica - a pior praga da história da Humanidade, disparada - torturava pessoas, aproveitava para pintar panos em cima do pênis e seios de seres bíblicos retratados em quadros e afrescos, numa precursão do famigerado "politicamente correto" que assola corações e mentes dos tempos atuais, principalmente os jovens.
Séculos depois - me lembrou o site do "New York Times" - o apresentador Ed Sullivan obrigou os Rolling Stones a cantarem em seu programa de TV americano "vamos passar um tempo juntos" em vez de "vamos passar uma noite juntos" , estrofe da letra da música "Let's Spend the Night Together", de1967.
E em 2003, pôsteres da capa de "Abbey Road" (1969), dos Beatles, foram vendidos nos... EUA, lógico, sem o cigarro nas mãos de Paul McCartney - em uma ação feita sem a anuência dos ingleses e no que os pensadores ingleses consideram o primeiro estupro fotográfico conhecido.
Reprodução
Capa original de "Abbey Road" (1969): esse blog não publica nenhuma obra censurada
A sanitarização da obra de arte não é mais monopólio norte-americano, é monopólio da estupidez humana.
E você, que preza uma boa obra de arte como ela é, lute contra esse câncer encastelado na sociedade, chamado "politicamente correto".
Montagem: Cláudio Nóvoa
Essa arte foi feita em abril de 2010, para a primeira postagem do BLOG DE KLAU contra o "politicamente correto" |
O nome disso é CENSURA, pura e simples.
Nenhum comentário:
Postar um comentário