O vídeo começa com dez dançarinos de smoking fazendo coreografias de musical da Broadway e,logo depois, do fundo do palco surge a estrela do número: ela vem pelas escadas, exuberante, sorriso aberto no rosto, usa vestido de paetê prateado, capa rosa, peruca loira platinada e maquiagem generosa.
Dubla Emoções, do Rei Roberto e, em seguida, desce do palco e sai distribuindo rosas vermelhas para o público sentado nas mesas.
Na frente da tela da TV, Eduardo Albarella, 72 anos, segura o controle do DVD, e olha para si mesmo no vídeo, num misto de orgulho e saudosismo.
“Isso não existe mais, não existe...”, comenta, saboreando a aura exuberante e romântica do show - o título do DVD resume o espírito de glória antiga do espetáculo: Miss Biá 50 anos de Glamour.
Se o nome de Albarella provavelmente não diz muita coisa, sua outra identidade, a de Miss Biá, diz uma enciclopédia.
Aricia Martins / Ag.Estado
A estrela dos palcos paulistanos Miss Biá
Pioneiro dos shows transformistas e ícone da história gay de São Paulo, Biá surgiu numa época em que se falava mais em “entendidos” do que em diversidade sexual, um tempo no qual ser gay era uma experiência difícil, vivida quase sempre às escondidas do mundo “normal”.
Subir num palco vestido de mulher então demandava não apenas talento, mas muita coragem, e a história de Miss Biá está intimamente ligada à boate NostroMondo, onde trabalhou 12 anos.
Localizada na “ilha” de prédios no encontro da rua da Consolação com a avenida Paulista, a casa funciona ininterruptamente desde 1971, e é atualmente a mais antiga boate gay em atividade nas Américas.
A Nostro, como a chamam os íntimos, foi uma das primeiras casas assumidamente gays de São Paulo - até então, pontos de encontro ficavam camuflados em boates, restaurantes e bares simpatizantes.
Ironicamente, foi durante os anos de chumbo da ditadura militar que surgiram as três casas que praticamente fundaram a noite gay de São Paulo: Medieval, Val Improviso e
A casa foi precursora dos shows de homens vestidos de mulher, coisa que podia dar cadeia por “atentado violento ao pudor”.
Os espetáculos eram protagonizados por travestis ou pelo que se chamava então de transformistas - designação que o termo “drag queen” tornou obsoleta.
Interpretações de Liza Minelli, Judy Garland, Shirley Bassey e Diana Ross eram hits do começo.
A ideia de investir nesse tipo de atração veio da lendária travesti Condessa Mônica, a segunda dona do espaço.
De dia, era o advogado Clóvis Vieira e trabalhava num cartório.
De noite, uma figura quase maternal para uma comunidade gay que começava a se sentir mais confiante.
“A Condessa era muito carinhosa, pegava no rosto da gente”, lembra Kaká di Polly, drag queen e psicólogo, célebre na cena LGBT paulistana.
“Ela deixava as bichinhas menores de idade entrarem. Se chegasse o juizado, escondia todo mundo atrás do palco. Mas não tinha nada de malícia, não drogava nem dava bebida pras menores.”
Blog da Kaká
A drag queen Kaká di Polly
Kaká está certissima: eu mesmo, que frequentei a Nostro praticamente todas as semanas dos 14 aos 25 anos, aprendi muito com a Condessa, um ser iluminado que me ensinou, principalmente educação, tolerância e respeito ao próximo.
Tanto, que quando tive problemas com meus pais por conta da minha sexualidade, Condessa foi figura decisiva - meu pai chegou a ser homenageado no palco da Nostro num domingo, dia dos pais, como exemplo de pai que, mesmo não entendendo, compreende as diferenças de seu filho.
A Nostro lançou uma porção de drags e travestis fundamentais do transformismo paulistano: Claudia Wonder, a própria Kaká, Dimmy Kier - o ex-bbb DiCésar, atual repórter do programa da Eliana - Phedra D. Cordoba - hoje atriz do grupo de teatro Os Satyros - Nany People, Salete Campari e Márcia Pantera.
E Miss Biá, claro, que trabalhava na produção e apresentava os shows.
“A Biá me ajudou muito”, lembra Márcia, que saiu da Brasilândia, periferia da zona norte de São Paulo, para conhecer a Nostro Mondo em 1987.
Como ela mesma diz: “Eu era só um gayzinho de 17 anos, jogava vôlei, era atleta. Quando vi meu primeiro show na Nostro, fiquei de boca aberta. Me vi naquele palco”.
Márcia Pantera ganhou fama rapidamente no mundo LGBT a partir do fim dos anos 80.
No figurino, um aliado de peso, ainda que desconhecido na época.
“Conheci o [Alexandre] Herchcovitch na porta da Nostro, ele falou que eu parecia com a Naomi Campbell. Pediu pra eu ligar pra ele e aí começou a fazer roupa pra mim.”
A fama da Nostro virou nacional graças a um aliado improvável: Silvio Santos, que desde os anos 70 leva números de transformismo ao seu programa.
O DJ Mauro Borges, pioneiro da cena clubber paulistana e hoje residente da Nostro, lembra bem de Silvio indicando a casa na TV:
“Ele falava que era uma casa com shows muito bonitos, onde você podia levar sua esposa, sua família” - e eu concordo, era um lugar mágico, onde você tinha gente bonita, bebidas de qualidade e shows espetaculares.
Arquivos Miss Biá e Kaká di Polly
A travesti Natasha Dumont se apresenta no palco da Nostro
Eu me lembro bem: num sábado, saí da última sessão de Victor ou Victória (1982) - excelente musical protagonizado por Dame Julie Andrews - do extinto Cine Brigadeiro - embaixo do Cartola Club, na esquina da Brigadeiro Luiz Antonio com Paulista -, onde o filme estava já em fim de exibição nas telonas, depois de ser exibido com sucesso nos mais importantes cinemas paulistanos.
Tinha visto o filme pela, no mínimo, vigésima vez, de tanto que eu gostei - e, em tempos sem video ou DVD, para ver várias vezes um filme, tínhamos de ir ao cinema mesmo.
A sessão acabou mais de meia-noite, e eu saí andando pela Paulista - naquela época não se era atacado, nem agredido - em direção à Nostro e cantarolando cada uma das músicas do musical.
Quando cheguei à Nostro, sempre lotada, a grande surpresa: uma Diva ruiva, linda e muito talentosa, representava no palco da casa, com bailarinos e figurinos lindíssimos, a música Le Jazz Hot, do filme que eu tinha acabado de ver!
Era Gretta Sttar, uma das mais talentosas e queridas figuras da noite paulistana, que ainda hoje abrilhanta nossos sentidos e inteligência pelos palcos da cidade.
Arquivos do Klau
A Diva Gretta Sttar
O produtor Darby Daniel foi o responsável pela conexão entre Silvio e os artistas do mundo gay paulistano, e garante que o dono do SBT nunca foi à Nostro.
“Mas foi comigo duas vezes à Medieval. Na segunda, levou sua mulher da época, a Cidinha.”
A Medieval era localizada na rua Augusta, ao lado da porta do Shopping Center 3, onde hoje é um restaurante por quilo - e atraía um público de classe média alta e de classe alta.
Era frequentada por celebridades e bem-nascidos como Chiquinho Scarpa e Fernando Collor de Melo.
Darby, hoje com 70 anos - e que sobrevive atualmente como empresário de shows de sexo explícito gay - era o homem da agenda premiada nessa época, e seus contatos foram fundamentais para o sucesso do número mais famoso de Miss Biá na Nostro: Herbe, uma sátira de Hebe Camargo - para quem Albarella trabalhou como maquiador e figurinista por anos.
E foi durante quatro anos que Miss Biá recebeu convidados para um bem-humorado talk show semanal no palco da Nostro.
Paulo Autran, Regina Duarte, Adriane Galisteu, Edson Celulari, Lucinha Lins, Claudia Raia, Wanderléa Ney Matogrosso... todos passaram pelo palco da casa.
“Tudo isso de graça”, lembra Biá.“Era uma época em que faziam isso sem cobrar cachê.”
Já Hebe nunca quis conhecer sua versão alternativa - e igualmente inteligente e talentosa.
Arquivos Miss Biá/Kaká di Polly
Miss Biá e Adriane Galisteu, no palco da Nostro
Ser flagrado em um ato homossexual ou sair vestido de mulher na rua podia render prisão até o começo dos anos 80.
Um delegado - José Wilson Richetti - virou o terror da comunidade nesse tempo com suas operações de “limpeza” das ruas e eram raras as vozes de apoio aos gays na sociedade e na mídia - travestis então eram o marginal do marginal.
Mesmo assim, há uma sensação de “tempo bom” entre quem viveu esse período.
A hostess e blogueira de moda Marcelona lembra das famosas matinês da Nostro:
“Era uma pegação ingênua, não tinha droga”.
Kaká recorda com carinho:
“Era um lugar para mim, onde podia viver minha vida, com meus amigos”.
Para José Gayegos, que trabalhou como assistente do costureiro Denner, até a repressão policial podia ter seu lado interessante.
“Uma vez eu e um amigo fomos abordados por dois homens da guarda civil na esquina da Ipiranga com a São João. Acabamos os quatro na minha garçonnière na rua Maria Paula. Eu comi um policial, meu amigo comeu o outro.”
Aos poucos, a comunidade LGBT começou a chegar a ganhar espaço no mainstream.
Em 1977, alguns veículos brasileiros já traziam seções dirigidas à comunidade gay: o pioneiro foi o diário Última Hora, onde o jornalista Celso Curi estreou em 1976 sua Coluna do Meio e chegou a ser processado pelo Ministério Público por defender “as uniões anormais entre seres do mesmo sexo”.
Curi também foi dono de um bar gay fervidíssimo nos anos 80 - o Espaço Off - em uma rua sem saída do elitizado bairro do itaim-Bibi.
Nos anos 80, o país se encantou por Roberta Close, o travesti mais famoso da história do Brasil.
Capa da Playboy, homenageada em música de Erasmo Carlos, o status de La Close foi resumido por uma manchete do extinto jornal Notícias Populares:
“A mulher mais bonita do Brasil é homem”.
Na segunda metade da década de 80 - eu estava lá, mas não me lembro, nem do dia, nem do ano - Miss Biá subiu ao palco da Nostro e anunciou a morte da Condessa Mônica, mais uma vítima famosa da Aids - ela tinha dias antes passado por uma cirurgia para finalmente ser mulher também de corpo, mas seu organismo já debilitado não se curou.
Alguns fãs não aceitam essa versão, mas está lá, na sua certidão de óbito: "infecção em decorrência do HIV".
Alguns fãs não aceitam essa versão, mas está lá, na sua certidão de óbito: "infecção em decorrência do HIV".
Em seguida, os bailarinos e artistas apresentaram o show em cartaz com muito profissionalismo, embora todos chorassem muito entre um movimento e outro.
Ela interpretava a música Finding Out the Hard Way, que a atriz, dançarina e cantora Cynthia Rhodes tão bem interpretou no filme Os Embalos de Sábado Continuam (1983).
Condessa estava lindíssima, com uma peruca de cabelos curtos - igual à cena em que Cynthia canta no filme para o Tony Manero de John Travolta - e vestia um macacão rosa com milhares de canutilhos.
Foi a última vez que eu a vi com vida.
Relembre Cynthia Rhodes interpretando "Finding Out the Hard Way", em cena do filme:
A partir daí, o gerente da Nostro, Hugo Lima, assumiu a casa - era o começo do fim do glamour.
O jornalista André Hidalgo - um dos sócios do clube Glória e diretor-geral da Casa de Criadores - lembra da decepção quando foi à Nostro depois de anos sem aparecer.
“Tinha sexo explícito no palco, era algo bem dramático, misturando sexo hétero e sexo gay.”
Eu também fiquei anos sem ir lá.
Quando retornei, depois muito tempo morando fora de SP, o que mais me chamou a atenção foi a sujeira: os banheiros, o piso grudento, o cheiro de cinema pornô do centrão, um horror, sem contar o famigerado "dark room".
Em tempos de visibilidade e aceitação cada vez maior da comunidade, incluindo aí o início da Parada LGBT, em 1997, a Nostro foi sendo vista cada vez mais como decadente e ultrapassada.
Os maravilhosos e bem produzidos shows de transformismo foram perdendo espaço para baladas com ecstasy, DJs, go-go boys, drag queens com nome de rum vagabundo e sem nenhum talento - e dark rooms.
A trilha da noite, que sempre foi eclética - tinha samba, disco, Madonna e Trio Los Angeles - se homogeneizou sob o bumbo eletrônico do house “bate-cabelo”.
As concorridas matinés de domingo, onde sempre tocavam músicas lentas para que os casais mais tímidos finalmente se formassem, acabaram.
“Ficou tudo muito pasteurizado. Antes as pessoas tinham mais estilo próprio, hoje é tudo dividido por categorias: barbie, urso”, diz Marcelona.
“A noite gay acabou. A cena perdeu o glamour”, lamenta Kaká.
Em 2010, a Nostro mudou de dono mais uma vez: foi comprada pelos DJs e empresários Gé Rodrigues e Igor Calmona, donos do DJ Club e de lojas de som e iluminação na rua Santa Ifigênia.
Rodrigues conta que investiu R$ 1 milhão na reforma da casa, acrescentando uma segunda pista e instalando equipamentos modernos.
DJ Eddy
NostroMondo hoje: casa quer voltar a ser referência da noite LGBT paulistana
Os antigos frequentadores - eu incluso -, porém, ressaltam que não é possível reviver um contexto, que uma história como a da Nostro só foi possível por uma conjunção de fatores sociais e culturais.
Eu ainda não fui lá nessa nova fase, mas pelo que tenho visto e lido, parece que é uma casa moderna, tecnológica, com pitacos de glamour e - o mais importante - sem dark room.
“A boate reunia gays de A a Z porque havia poucos lugares onde eles pudessem ir”, lembra Hidalgo.
“Foi a grande vitrine para gays de todos os tipos”, resume Miss Biá.
"Foi onde eu passei os momentos mais felizes da minha vida", encerro eu.
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Matéria Base: Repórter Camilo Rocha - revista Trip no. 204 - 24.10.2011
Redação Final + Textos, Fotos e Vídeo Adicionais: Cláudio Nóvoa
2 comentários:
Adorei a reportagem, estive la no dia da reinalguraçäo, a casa esta simplesmente impecavel em seus minimos detalhes e fui transportada a época de ouro da Nostro e me emocionei em ver grandes divas como Aloma, Frank Ross e nossa maravilhosa Gretta Star que foi um show a parte fazendo Rita Hayworth com os bailarinos, desejo toda sorte aos novos proprietários da Nostro bjs.
Marcela Volpato Suiça
Cara, que texto interessante! Apenas uma correção, a Condessa Mônica morreu já nos anos 90, pois em 1989 me lembro de ter visto um show dela, e tenho essa certeza pois estava com um namorado, e só soube da morte em 1992. No mais, texto primoroso, deu uma saudadona enorme de dias muito felizes que passei por lá. Uma pena que não exista registro fotográfico da Condessa, Dulce e Walkyria, que faziam o trio nas matinês de domingo.
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