Se fosse pelos cromossomos XX, seria mulher.
Se fosse pelo RG, seria Lourdes Helena.
Mas é Léo, Léo Moreira Sá, 53, resolveu passar pelo que chama de "experiência estética radical" para adaptar o seu corpo feminino à identidade masculina com que sempre se viu.
Lou vai virar Léo, e sua transformação cirúrgica - mastectomia total das duas mamas - integrará o espetáculo Cabaret Stravaganza, encenado pela Cia. de Teatro Os Satyros.
A peça trará em uma das cenas o processo de construção do "novo corpo" de Léo - a largada foi foi no começo de outubro, quando os Satyros lançaram o projeto Lou-Léo de "financiamento colaborativo", uma espécie de vaquinha pela internet com a meta de arrecadar R$ 15 mil para custear as despesas com a operação, a ser realizada em um hospital particular.
No Brasil, é inédito um homem em corpo de mulher topar aparecer em uma performance que desnuda a construção artificial do seu físico masculino.
Marlene Bergamo/Folhapress
Léo Moreira Sá, no dia da apresentação do projeto para arrecadar fundos para sua cirurgia
Lou sempre pensou que era Léo.
Nascido em São Simão, pequena cidade a 280 km de São Paulo, hoje com 14 mil almas, Léo lembra-se do susto que levou quando, aos sete anos, primeiro dia de aulas do primário, a mãe apareceu-lhe com uma sainha plissada e a ordem: "Vista" - até ali, a vida era jogar bola com os moleques, shorts sem camiseta, como eles.
"Eu não vou com essa roupa. Não vou mesmo", Léo respondeu.
"É o uniforme da escola e você é uma menina", a mãe eletrocutou - e lá se foi o garoto esquisito, vestido de menina (chorando como uma?), ser vítima de bullying.
Da sua cidade natal, Léo se lembra de uma noite de 1967, quando o céu de São Simão iluminou-se inteiro.
Um meteoro? Satélite desabando? ETs?
A família de Léo nunca soube.
Foi para São Paulo.
Com 13 anos, o menino em pele de menina estava em desespero - tanto, que teve o primeiro surto, tratado com o tranquilizante Valium.
A redenção foi a aprovação no vestibular para ciências sociais na USP, onde virou feminista militando em uma organização de esquerda radical -ainda se considera assim.
Arquivo Pessoal
Léo, de cabelo curto e loiro, quando era da banda As Mercenárias
Logo depois, ingressou na festejada banda punk As Mercenárias, até hoje cultuada como um dos melhores grupos de punk e pós-punk feminino do planeta.
"Ali eu voltei a viver", diz Léo.
O grande amor apareceu em 1995, e não foi por uma mulher, mas sim pela travesti Gabriella Bionda - os dois chegaram a se casar no civil e,no registro, ele aparece como Lourdes e ela com seu nome masculino.
Eles tentaram casar no religioso também: um vestiu as roupas do outro e apresentaram-se como um casal heterossexual ortodoxo na tradicionalíssima igreja Nossa Senhora do Brasil, no Jardim Europa.
"Queremos fazer o curso de noivos", pediram - o padre apitou o impedimento.
Em 2004, Léo foi preso em flagrante por tráfico de drogas.
Tinha se transformado numa espécie de rei do ecstasy da noite paulistana - Gabriella, para não dançar, foi morar na Europa.
Léo passou cinco anos no circuito das cadeias de mulheres, onde perdeu tudo e onde assumiu, de vez, sua inadequação ao corpo feminino.
Há dois anos e meio, saiu da cana e virou ator dos Satyros.
Vive em um mini-apê no Bexiga e faz curso para se tornar iluminador de teatro.
Das drogas, Léo está fora.
Toma testosterona para adquirir caracteres masculinos - barba, já tem - há dois meses, colocou prótese no maxilar, para deixá-lo mais quadrado, e faz academia diariamente.
Arquivo Pessoal
O casal Gabriela Bionda(esq) e Léo
No dia da apresentação do projeto Lou-Léo, apresentou-se saradão, graças a um peitoral comprado por R$ 10 na rua 25 de Março - na verdade, a parte frontal de um manequim, desses de loja, que ele recortou e colocou tampando os peitos de mulher que ainda tem.
"Sou um homem?", perguntou, provocativo.
E ele mesmo emendou:
"Não. Nem mulher, nem homem, nem transexual. Sou pós-gênero. Não sou uma resposta. Eu sou uma pergunta".
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Matéria da repórter Laura Capriglione, para a Folha de S.Paulo
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