quarta-feira, 9 de novembro de 2011

A DIFÍCIL ADAPTAÇÃO DE UM CORPO FEMININO A UMA IDENTIDADE MASCULINA


Se fosse pelos cromossomos XX, seria mulher.
Se fosse pelo RG, seria Lourdes Helena.

Mas é Léo, Léo Moreira Sá, 53, resolveu passar pelo que chama de "experiência estética radical" para adaptar o seu corpo feminino à identidade masculina com que sempre se viu.

Lou vai virar Léo, e sua transformação cirúrgica - mastectomia total das duas mamas - integrará o espetáculo Cabaret Stravaganza,  encenado pela Cia. de Teatro Os Satyros.

A peça trará em uma das cenas o processo de construção do "novo corpo" de Léo - a largada foi foi no começo de outubro, quando os Satyros lançaram o projeto Lou-Léo de "financiamento colaborativo", uma espécie de vaquinha pela internet com a meta de arrecadar R$ 15 mil para custear as despesas com a operação, a ser realizada em um hospital particular.

No Brasil, é inédito um homem em corpo de mulher topar aparecer em uma performance que desnuda a construção artificial do seu físico masculino.

Marlene Bergamo/Folhapress
Leo Moreira Sá, no dia da apresentação do projeto para arrecadar fundos para sua cirurgia, usa peitoral masculino comprado na rua 25 de março
Léo Moreira Sá, no dia da apresentação do projeto para arrecadar fundos para sua cirurgia

Lou sempre pensou que era Léo.
Nascido em São Simão, pequena cidade a 280 km de São Paulo, hoje com 14 mil almas, Léo lembra-se do susto que levou quando, aos sete anos, primeiro dia de aulas do primário, a mãe apareceu-lhe com uma sainha plissada e a ordem: "Vista" - até ali, a vida era jogar bola com os moleques, shorts sem camiseta, como eles.

"Eu não vou com essa roupa. Não vou mesmo", Léo respondeu.
"É o uniforme da escola e você é uma menina", a mãe eletrocutou - e lá se foi o garoto esquisito, vestido de menina (chorando como uma?), ser vítima de bullying.

Da sua cidade natal, Léo se lembra de uma noite de 1967, quando o céu de São Simão iluminou-se inteiro.
Um meteoro? Satélite desabando? ETs?
A família de Léo nunca soube.

Foi para São Paulo.
Com 13 anos, o menino em pele de menina estava em desespero - tanto, que teve o primeiro surto, tratado com o tranquilizante Valium.

A redenção foi a aprovação no vestibular para ciências sociais na USP, onde virou feminista militando em uma organização de esquerda radical -ainda se considera assim.

Arquivo Pessoal
Léo, de cabelo curto e loiro, quando era de As Mercenárias

Léo, de cabelo curto e loiro, quando era da banda As Mercenárias

Logo depois, ingressou na festejada banda punk As Mercenárias, até hoje cultuada como um dos melhores grupos de punk e pós-punk feminino do planeta.
"Ali eu voltei a viver", diz Léo.

O grande amor apareceu em 1995, e não foi por uma mulher, mas sim pela travesti Gabriella Bionda - os dois chegaram a se casar no civil e,no registro, ele aparece como Lourdes e ela com seu nome masculino.

Eles tentaram casar no religioso também: um vestiu as roupas do outro e apresentaram-se como um casal heterossexual ortodoxo na tradicionalíssima igreja Nossa Senhora do Brasil, no Jardim Europa.
"Queremos fazer o curso de noivos", pediram - o padre apitou o impedimento.

Em 2004, Léo foi preso em flagrante por tráfico de drogas.
Tinha se transformado numa espécie de rei do ecstasy da noite paulistana - Gabriella, para não dançar, foi morar na Europa.

Léo passou cinco anos no circuito das cadeias de mulheres, onde perdeu tudo e onde assumiu, de vez, sua inadequação ao corpo feminino.

Há dois anos e meio, saiu da cana e virou ator dos Satyros.
Vive em um mini-apê no Bexiga e faz curso para se tornar iluminador de teatro.
Das drogas, Léo está fora.

Toma testosterona para adquirir caracteres masculinos - barba, já tem - há dois meses, colocou prótese no maxilar, para deixá-lo mais quadrado, e faz academia diariamente.

Arquivo Pessoal
O casal Gabriela Bionda(esq), travesti, e Léo Moreira Sá
O casal Gabriela Bionda(esq) e Léo

No dia da apresentação do projeto Lou-Léo, apresentou-se saradão, graças a um peitoral comprado por R$ 10 na rua 25 de Março - na verdade, a parte frontal de um manequim, desses de loja, que ele recortou e colocou tampando os peitos de mulher que ainda tem.

"Sou um homem?", perguntou, provocativo.
E ele mesmo emendou:
"Não. Nem mulher, nem homem, nem transexual. Sou pós-gênero. Não sou uma resposta. Eu sou uma pergunta".
*****
Matéria da repórter Laura Capriglione, para a Folha de S.Paulo

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