quinta-feira, 11 de novembro de 2010

CARTUNISTA LAERTE RESOLVEU SE VESTIR E SE MAQUIAR COMO MULHER; AMIGOS FINGEM QUE NADA MUDOU

"Sou a favor de dessatanizar a palavra travesti. Você fala travesti, as pessoas leem traveca, suruba, Ronaldinho, esse mundo de ideias prontas"

"Quando me travisto, uso o repertório consagrado às mulheres. Exploro minha feminilidade, mas não quero convencer as pessoas de que sou mulher"
LAERTE COUTINHO, cartunista


O cartunista Larte Coutinho sempre foi meio porra louca, só para tentarmos usar uma palavra da nossa geração.

Publicado diariamente na "Folha de S.Paulo", o autor de inúmeras tiras de sucesso como
"Piratas do Tietê" e "Hugo" mais uma vez dá um nó dos bons em nossas cabeças.

De uns tempos para cá - como seu personagem Hugo que começou a se vestir de mulher e virou Muriel - começou a se travestir também!

O repórter Ivan Finotti fez uma ótima matéria com Laerte, e é isso o que você vai conferir agora.

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Exatamente como na fábula do rei nu, Laerte anda por aí, todos percebem que há algo estranho - errado? diferente? bizarro? - com sua roupa, mas ninguém se manifesta.

Foto: Carlos Cecconello/Folhapress - Arte Final: Cláudio Nóvoa

o Cartunista Laerte Coutinho durante a entrevista e sua criação Hugo/Muriel: igualzinhos!

Pela frente, ninguém fala nada.
Quando ele(a) vira as costas, porém, os amigos e conhecidos se entreolham estarrecidos.

"Será que endoidou?", se perguntam.

Mas, diferentemente do rei, Laerte não está nu. Está vestido de mulher.

Quase sexagenário, o cartunista da Folha Laerte Coutinho decidiu dar vazão à sua feminilidade.

No feriado, um amigo antigo foi à sua casa, no Butantã.
"Eu estava de saia. E olha que não era uma saia austera, como uma jeans (risos)."
"Era uma saia indiana, cheia de babadinhos. Eu tinha acabado de fazer a unha. Ficamos conversando. Acho que ele não é uma pessoa que se incomoda com isso, mas talvez tivesse uma pergunta presa na garganta."

E que pergunta era essa, Laerte?
"Acho que era: "Será que ele está batendo bem?". Pois estou sim. Estou no completo controle de minhas faculdades mentais."

De salto médio, meias coloridas, maquiagem leve e namorada a tiracolo, Laerte chega para dar entrevista à Folha sobre seu novo estilo de vida.

Confira:

Folha - Diversas possibilidades para a mudança do seu estilo de vida passam pela cabeça. A primeira delas é que você pirou, um processo que teria começado em 2005, com a morte de seu filho num acidente de carro, passou pelas tiras da Ilustrada, cada vez mais estranhas, e agora isso. Você está louco, Laerte?

Laerte Coutinho - Eu não me sinto fora do eixo, fora do tom, fora de nada. Comecei a me aproximar do travestimento, ou "cross-dressing", em 2004. Interrompi - e a morte de meu filho tem um peso nisso - e retomei em 2009. Fiz a minha primeira montagem em 2009. Mas as coisas que se evidenciaram [em meu trabalho] a partir de 2005 já estavam ali, latentes, germinando em 2004.

Uma segunda possibilidade é que você se veste porque isso dá tesão.

Não, não é um fetiche sexual. Não é, nem é um tema que me interessa agora. O travestimento é uma questão de gênero, não de sexo. São coisas independentes, autônomas, que nem o executivo e o legislativo. É um erro fazer essa mistura. "Ah, está vestido de mulher, então é viado." "Jogou bola, é macho." E eu que gostava de costurar e de jogar bola?
O que tenho feito é investigar essa parte de gênero. O que tenho descoberto é que isso é muito arraigado, essa cultura binária, essa divisão do mundo entre mulheres e homens é um dogma muito forte. Não se rompe isso facilmente. desafiar esses códigos perturba todo o ambiente ao redor de você.

Mas você é bissexual, certo?

Sou.

E não há ligação entre isso e o "cross-dressing"?

Não.

Você está fazendo isso para espantar o tédio?

Não faço isso porque a vida está sem graça. O problema é a vida submetida a essa ditadura dos gêneros, a esses tabus que não podem ser quebrados. É você sentir que sua liberdade está sendo tolhida, que as possibilidades infinitas que você tem de expressão na vida, ao sair, ao se vestir, ao se manifestar, ao tratar as pessoas, seu modo, seu gestual, sua fala, tudo isso é cerceado e limitado por códigos muito fortes e muito restritos. Isso é uma coisa que me incomoda.

As pessoas aparentam normalidade e tentam não demonstrar um espanto, certo?

Por uma razão: se demonstram espanto, estão ferindo um código de boa conduta intelectual. Demonstram que não são modernos, por exemplo.

E na rua?

Quando eu estou na rua de saia e passa uma kombi e o cara faz "fiu-fiu" pra mim, ele não teve dificuldade nenhuma em fazer aquilo. E eu também recebo de forma muito clara.

Você dá pistas de que vai estar travestido quando vai encontrar uma pessoa que ainda não sabe?

Existe uma tática, um modo de preparar um pouco. Vou na casa de uma pessoa que não conheço, não vou totalmente montado. Questão de bom senso.

Mas você pode ir de homem?

Estou abolindo esses negócios.

Você pode ir sem maquiagem?

Eu estou sem maquiagem. Ops, ah, não, estou com olho pintado! Mas posso, sim, ir sem maquiagem.

Como foi o Natal em família? Com vestido?

Não, não. Só unha mesmo. Não estava nem de bolsa. Acho que foi mais mãos mesmo. Rolou um certo estranhamento com o cabelo. Esse corte feminino, feito pela [minha namorada] Tuca.

Avisou de alguma forma para se prepararem?

Não, fui na louca.

E o Angeli? Você já encontrou o Angeli?

Eu estou dando pra ele! (risos)

Ele vai adorar ler isso!

(Risos) Brincadeira. O Angeli é uma beleza. Achou superlegal. O Angeli é um exemplo de que uma pessoa pode ser completamente hétero e legal.

Como você explica isso para as pessoas?

É como se a vida tivesse me levado a essa circunstância e, quando eu me vi, percebi que aquilo representava uma busca pra mim. Foi mais ou menos isso que senti. Quando vi, comecei a fazer tiras do Hugo virando a Muriel.

O lema do Brazilian Crossdresser Club, do qual você faz parte, é "existimos pelo prazer de ser mulher". Que prazer é esse, Laerte?

Eu não concordo muito com esse lema, porque é uma frase que procura construir uma certa fantasia que eu não partilho. Eu não vou ser mulher nunca. Mas acho que é possível sair na rua e ser aceita como uma pessoa que se veste daquela maneira, que se enfeita e se produz e se apresenta daquela maneira.

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Confira três tiras de Hugo/Muriel:



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Será que o Laerte não está se vestindo de mulher para lançar a "Muchacha"? , podemos nos perguntar.

"É claro que não", responde ele, sério.

O caso é que, ao mesmo tempo em que se descobria "cross-dresser", Laerte desenvolvia essa novelinha lisérgica, inspirada nos seriados de ação dos anos 50. E com uma personagem travesti.

Das aventuras do Capitão Tigre, que se passa ao vivo em frente às enormes câmeras da época, aos bastidores e às vidas dos atores, acompanhamos uma São Paulo antiga e psicodélica, com morcegos travestis, visitantes do futuro e adolescentes apaixonadas.

Além das publicadas na Ilustrada, o livro tem tiras inéditas e uma nova história com a origem do Capitão Tigre, desenhada por seu filho, Rafael Coutinho.

MUCHACHA
AUTORES:
Laerte Coutinho e Rafael Coutinho
EDITORA: Companhia das Letras
QUANTO: R$ 29 (96 págs.)

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Matéria de Ivan Finotti, publicada na "Folha de S.Paulo "

Redação Final: Cláudio Nóvoa

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