sexta-feira, 15 de junho de 2012

CARLOS REICHENBACH, O POETA INSUBSTITUÍVEL DA IMAGEM



DEPOIMENTO

Acabo de chegar do MIS, onde rendi minhas homenagens no velório de um dos mestres que mais admiro, seja pela sua obra, seja pela pessoa antenada, culta, acessível e amiga que ele foi.

Morto na tarde de ontem, dia em que completava 67 anos, Carlos Reichenbach era tudo isso e muito, muito mais, como bem lembrou o crítico André Barcinski na "Folha" de hoje.

Carlão não fez só filmes, mas escreveu sobre eles, exibiu-os, discutiu-os, atuou neles, deu aulas magistrais sobre Cinema e fez dele sua vida e sua missão.

Nunca recusava um convite para falar de cinema ou para expor sua opinião - sempre franca e direta - e parecia gostar dos marginais, dos inconformados.

Sempre fez e defendeu um cinema autoral, preferia um fracasso arriscado à mediocridade inofensiva pois, para ele, cinema sem risco era cinema menor.

Carlão foi uma figura fundamental do cinema marginal brasileiro e da Boca do Lixo - pólo cinematográfico paulistano onde ele, apesar de expoente, defendida não só suas obras, mas também de outros cineastas brasileiros, torcia e mandava uma ótima energia a cada trabalho que era completado e exibido.

Maior defensor da máxima de que "cinema bom deve ser para todos", consagrou-se como um dos maiores autores da nossa cinematografia, onde misturava erudição com uma busca constante pela comunicação com o público.

Seus cursos e aulas - e eu participei de muitos - eram simples, didáticos e facilmente inteligíveis: em vez de despejar uma catarata de informações na orelha dos que o ouviam, Carlão pegava seu espectador pelo simples fato de faze-lo pensar, criticar e assimilar.

Cineasta mais cinéfilo que o Brasil já teve, sua cultura cinematográfica deixava todos de boca aberta: seja qual fosse o tema - cinema brasileiro, italiano, americano, japonês - ele versava elegante e profundamente.

Barsinski lembrou bem um momento muito marcante - a que eu também estava presente: Roger Corman, o cultuado diretor cult americano e rei dos filmes de terror de baixo orçamento, veio a São Paulo para uma retrospectiva dedicada ao seu trabalho, e se surpreendeu quando Reichenbach mostrou todo o conhecimento que tinha sobre sua obra, principalmente quando citou o drama racial "The Intruder" (1962), protagonizado por um jovem cartismático e belo William Shatner - antes de o ator tornar-se lenda como o Capitão Kirk da cult série "Star Trek".

Conhecido por ter produzido mais de 300 filmes, Corman disse que esse "foi meu único filme que deu prejuízo" - para Carlão devolver: "Mas é uma obra-prima. Meu filme predileto entre todos que você já dirigiu".

Naquele dia, não foi só Corman que ficou comovido.

Os idiotas de plantão sempre fazem questão de dizer que ninguém é insubstituível, mas Reichenbach era: a empolgação com que falava de cinema, sua energia com que discutia filmes e defendia seu ponto de vista, isso todos nós amantes da sétima arte perdemos para sempre.

Seus filmes vão ficar, claro, como testemunho de seu gênio e talento, mas a morte de Carlão é absolutamente irreparável.
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BIOGRAFIA

Gaúcho de Porto Alegre, Carlos Reichenbach mudou-se aos quatro meses de idade para São Paulo - terra de seu pai, também chamado Carlos.

Incentivador do cinema nacional e um cinéfilo antes de tudo, ele participou dos movimentos da Boca do Lixo e do cinema marginal.

Misturando sensualidade e nudez a gêneros pouco usuais no Brasil, como o suspense, Carlão, como era conhecido, teve seu maior sucesso comercial com "A Ilha dos Prazeres Proibidos" (1978) - o thriller sobre uma assassina (Neide Ribeiro) foi realizado em três semanas e atraiu mais de 4 milhões de espectadores no Brasil e outros países da América do Sul.

Reichenbach sempre quis fazer filmes comerciais, apesar de "Falsa Loura", seu último longa, de 2007, ter passado despercebido - o desempenho da obra decepcionou o diretor, que considerava o filme protagonizado por Rosane Mulholland o seu mais popular desde os anos 1980.

Ex-professor de cinema da Escola de Comunicações e Artes da USP, Reichenbach era sócio da produtora Dezenove Som e Imagens e um de seus principais prazeres era apresentar a Sessão do Comodoro no CineSesc, exibindo filmes raros e inéditos no circuito, a maioria de horror.

A última glória pública foi no Festival de Roterdã  - Holanda - em fevereiro deste ano, onde ele foi homenageado com a exibição de uma cópia restaurada de "Lilian M. - Relatório Confidencial" (1975) - sobre uma mulher que abandona a família no interior para tentar a vida em São Paulo - o evento já fizera uma mostra especial com diversos de seus filmes na década de 80.

Em 2010, a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo também havia rendido homenagem ao cineasta, que ganhou vários prêmios, como o Kikito de direção em Gramado por "Filme Demência" - 1986, e o Candango de melhor filme no Festival de Brasília por "Alma Corsária" - 1993.

Carlos Reichenbach morreu em São Paulo na tarde de ontem, dia em que completava 67 anos - teria sofrido um infarto.

Ele descansava em casa quando passou mal e chegou morto à Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, na Vila Buarque, Centro.

Casado com Lygia Reichenbach, deixa três filhos e uma neta.

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FILMOGRAFIA

1968: "Esta Rua tão Augusta" (curta documentário)
1968: "As Libertinas" (segmento "Alice")
1969: "Audácia" (segmentos "Prólogo" e "A Badaladíssima dos Trópicos x Os Picaretas do Sexo")
1971: "Corrida em Busca do Amor"
1975: "Lilian M.: Relatório Confidencial"
1978: "Sede de Amar"
1978: "A Ilha dos Prazeres Proibidos"
1980: "O Império do Desejo"
1981: "O Paraíso Proibido"
1980: "Amor, Palavra Prostituta"
1982: "As Safadas" (segmento "Rainha do Fliperama")
1983: "Extremos do Prazer"
1985: "Filme Demência"
1986: "Anjos do Arrabalde"
1990: "City Life" (documentário) (segmento "Desordem em Progresso")
1993: "Alma Corsária"
1994: "Olhar e Sensação" (curta)
1999: "Dois Córregos - Verdades Submersas no Tempo"
1999: "Bens Confiscados"
2002: "Equilíbrio e Graça" (curta)
2004: "Garotas do ABC"
2007: "Falsa Loura"
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OS FILMES PREDILETOS

Em 2007, a convite da Folha, Carlos Reichenbach fez uma lista de cinco filmes que mudaram a sua vida.

Confira suas escolhas, acompanhadas de um pequeno comentário:

"O Desprezo" (Jean-Luc Godard, 1963)
"O mais deflagrador dos filmes que vi na vida e a mais contundente reflexão sobre o cinema como meio de expressão".

"Dois Destinos" (Valerio Zurlini, 1962)
"Um dos filmes mais melancólicos e amargos da história. Cinema que aspira a pintura e a música. "Bem-aventurados os pobres de espírito que passaram pela vida sem nunca experimentar a renúncia ou a transgressão."; a epígrafe final de "Dois Destinos" mudou algumas vidas, incluindo a minha".

"Vidas Secas" (Nelson Pereira dos Santos, 1963)
"O melhor filme brasileiro de todos os tempos. Paulo Emílio Salles Gomes, quando lecionava na Escola Superior de Cinema São Luiz, nos obrigou a assisti-lo mais de seis vezes. Durante duas aulas seguidas nos falou de Seu Tomás da bolandeira, o personagem essencial do romance de Graciliano Ramos, que Nelson eliminou imageticamente em sua adaptação para o cinema. Foi então que aprendi que fidelidade ao texto literário não pressupõe subserviência".

"Cão Branco" (Samuel Fuller, 1982)
"O filme que eu gostaria de ter assinado. Todos os recursos da técnica e da gramática cinematográficas _do travelling circular revelador e espacial à câmera lenta e ao "chassis reversível" de alto impacto_ a serviço da emoção genuína. Por trás da história de um adestrador de cães negro que tenta reverter a fúria racista de um cão branco, um libelo crucial contra a intolerância. Tão pungente e radical que os distribuidores americanos tiveram medo de lançá-lo nos cinemas".

"Confissões de um Comissário de Polícia ao Procurador-Geral da República" (Damiano Damiani, 1971)
"Uma porrada no estômago (e na consciência), como há muito tempo o cinema não ousa mais experimentar. A inclusão na lista, além de reafirmar a importância de um grande realizador pouco valorizado, serve para lembrar ao Leon Cakoff da necessidade urgente de uma retrospectiva Damiani na Mostra de São Paulo, com a presença do próprio (foto)".


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