DEPOIMENTO
Acabo de chegar do MIS, onde rendi minhas homenagens no velório de um dos mestres que mais admiro, seja pela sua obra, seja pela pessoa antenada, culta, acessível e amiga que ele foi.
Morto na tarde de ontem, dia em que completava 67 anos, Carlos Reichenbach era tudo isso e muito, muito mais, como bem lembrou o crítico André Barcinski na "Folha" de hoje.
Carlão não fez só filmes, mas escreveu sobre eles, exibiu-os, discutiu-os, atuou neles, deu aulas magistrais sobre Cinema e fez dele sua vida e sua missão.
Nunca recusava um convite para falar de cinema ou para expor sua opinião - sempre franca e direta - e parecia gostar dos marginais, dos inconformados.
Sempre fez e defendeu um cinema autoral, preferia um fracasso arriscado à mediocridade inofensiva pois, para ele, cinema sem risco era cinema menor.
Carlão foi uma figura fundamental do cinema marginal brasileiro e da Boca do Lixo - pólo cinematográfico paulistano onde ele, apesar de expoente, defendida não só suas obras, mas também de outros cineastas brasileiros, torcia e mandava uma ótima energia a cada trabalho que era completado e exibido.
Maior defensor da máxima de que "cinema bom deve ser para todos", consagrou-se como um dos maiores autores da nossa cinematografia, onde misturava erudição com uma busca constante pela comunicação com o público.
Seus cursos e aulas - e eu participei de muitos - eram simples, didáticos e facilmente inteligíveis: em vez de despejar uma catarata de informações na orelha dos que o ouviam, Carlão pegava seu espectador pelo simples fato de faze-lo pensar, criticar e assimilar.
Cineasta mais cinéfilo que o Brasil já teve, sua cultura cinematográfica deixava todos de boca aberta: seja qual fosse o tema - cinema brasileiro, italiano, americano, japonês - ele versava elegante e profundamente.
Barsinski lembrou bem um momento muito marcante - a que eu também estava presente: Roger Corman, o cultuado diretor cult americano e rei dos filmes de terror de baixo orçamento, veio a São Paulo para uma retrospectiva dedicada ao seu trabalho, e se surpreendeu quando Reichenbach mostrou todo o conhecimento que tinha sobre sua obra, principalmente quando citou o drama racial "The Intruder" (1962), protagonizado por um jovem cartismático e belo William Shatner - antes de o ator tornar-se lenda como o Capitão Kirk da cult série "Star Trek".
Conhecido por ter produzido mais de 300 filmes, Corman disse que esse "foi meu único filme que deu prejuízo" - para Carlão devolver: "Mas é uma obra-prima. Meu filme predileto entre todos que você já dirigiu".
Naquele dia, não foi só Corman que ficou comovido.
Os idiotas de plantão sempre fazem questão de dizer que ninguém é insubstituível, mas Reichenbach era: a empolgação com que falava de cinema, sua energia com que discutia filmes e defendia seu ponto de vista, isso todos nós amantes da sétima arte perdemos para sempre.
Seus filmes vão ficar, claro, como testemunho de seu gênio e talento, mas a morte de Carlão é absolutamente irreparável.
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BIOGRAFIA
Gaúcho de Porto Alegre, Carlos Reichenbach mudou-se aos quatro meses de idade para São Paulo - terra de seu pai, também chamado Carlos.
Incentivador do cinema nacional e um cinéfilo antes de tudo, ele participou dos movimentos da Boca do Lixo e do cinema marginal.
Misturando sensualidade e nudez a gêneros pouco usuais no Brasil, como o suspense, Carlão, como era conhecido, teve seu maior sucesso comercial com "A Ilha dos Prazeres Proibidos" (1978) - o thriller sobre uma assassina (Neide Ribeiro) foi realizado em três semanas e atraiu mais de 4 milhões de espectadores no Brasil e outros países da América do Sul.
Reichenbach sempre quis fazer filmes comerciais, apesar de "Falsa Loura", seu último longa, de 2007, ter passado despercebido - o desempenho da obra decepcionou o diretor, que considerava o filme protagonizado por Rosane Mulholland o seu mais popular desde os anos 1980.
Ex-professor de cinema da Escola de Comunicações e Artes da USP, Reichenbach era sócio da produtora Dezenove Som e Imagens e um de seus principais prazeres era apresentar a Sessão do Comodoro no CineSesc, exibindo filmes raros e inéditos no circuito, a maioria de horror.
A última glória pública foi no Festival de Roterdã - Holanda - em fevereiro deste ano, onde ele foi homenageado com a exibição de uma cópia restaurada de "Lilian M. - Relatório Confidencial" (1975) - sobre uma mulher que abandona a família no interior para tentar a vida em São Paulo - o evento já fizera uma mostra especial com diversos de seus filmes na década de 80.
Em 2010, a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo também havia rendido homenagem ao cineasta, que ganhou vários prêmios, como o Kikito de direção em Gramado por "Filme Demência" - 1986, e o Candango de melhor filme no Festival de Brasília por "Alma Corsária" - 1993.
Carlos Reichenbach morreu em São Paulo na tarde de ontem, dia em que completava 67 anos - teria sofrido um infarto.
Ele descansava em casa quando passou mal e chegou morto à Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, na Vila Buarque, Centro.
Casado com Lygia Reichenbach, deixa três filhos e uma neta.
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FILMOGRAFIA
1968: "Esta Rua tão Augusta" (curta documentário)
1968: "As Libertinas" (segmento "Alice")
1969: "Audácia" (segmentos "Prólogo" e "A Badaladíssima dos Trópicos x Os Picaretas do Sexo")
1971: "Corrida em Busca do Amor"
1975: "Lilian M.: Relatório Confidencial"
1978: "Sede de Amar"
1978: "A Ilha dos Prazeres Proibidos"
1980: "O Império do Desejo"
1981: "O Paraíso Proibido"
1980: "Amor, Palavra Prostituta"
1982: "As Safadas" (segmento "Rainha do Fliperama")
1983: "Extremos do Prazer"
1985: "Filme Demência"
1986: "Anjos do Arrabalde"
1990: "City Life" (documentário) (segmento "Desordem em Progresso")
1993: "Alma Corsária"
1994: "Olhar e Sensação" (curta)
1999: "Dois Córregos - Verdades Submersas no Tempo"
1999: "Bens Confiscados"
2002: "Equilíbrio e Graça" (curta)
2004: "Garotas do ABC"
2007: "Falsa Loura"
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OS FILMES PREDILETOS
Em 2007, a convite da Folha, Carlos Reichenbach fez uma lista de cinco filmes que mudaram a sua vida.
Confira suas escolhas, acompanhadas de um pequeno comentário:
"O Desprezo" (Jean-Luc Godard, 1963)
"O mais deflagrador dos filmes que vi na vida e a mais contundente reflexão sobre o cinema como meio de expressão".
"Dois Destinos" (Valerio Zurlini, 1962)
"Um dos filmes mais melancólicos e amargos da história. Cinema que aspira a pintura e a música. "Bem-aventurados os pobres de espírito que passaram pela vida sem nunca experimentar a renúncia ou a transgressão."; a epígrafe final de "Dois Destinos" mudou algumas vidas, incluindo a minha".
"Vidas Secas" (Nelson Pereira dos Santos, 1963)
"O melhor filme brasileiro de todos os tempos. Paulo Emílio Salles Gomes, quando lecionava na Escola Superior de Cinema São Luiz, nos obrigou a assisti-lo mais de seis vezes. Durante duas aulas seguidas nos falou de Seu Tomás da bolandeira, o personagem essencial do romance de Graciliano Ramos, que Nelson eliminou imageticamente em sua adaptação para o cinema. Foi então que aprendi que fidelidade ao texto literário não pressupõe subserviência".
"Cão Branco" (Samuel Fuller, 1982)
"O filme que eu gostaria de ter assinado. Todos os recursos da técnica e da gramática cinematográficas _do travelling circular revelador e espacial à câmera lenta e ao "chassis reversível" de alto impacto_ a serviço da emoção genuína. Por trás da história de um adestrador de cães negro que tenta reverter a fúria racista de um cão branco, um libelo crucial contra a intolerância. Tão pungente e radical que os distribuidores americanos tiveram medo de lançá-lo nos cinemas".
"Confissões de um Comissário de Polícia ao Procurador-Geral da República" (Damiano Damiani, 1971)
"Uma porrada no estômago (e na consciência), como há muito tempo o cinema não ousa mais experimentar. A inclusão na lista, além de reafirmar a importância de um grande realizador pouco valorizado, serve para lembrar ao Leon Cakoff da necessidade urgente de uma retrospectiva Damiani na Mostra de São Paulo, com a presença do próprio (foto)".
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