Muito comum no cinema americano e europeu, dramas históricos ou que desconstroem figuras famosas da política brasileira não raro são filmes fadados ao fracasso.
Aqui, salvo o chapa branca e campeão de bilheteria 'Independência ou Morte' (1972), que comemorou os 150 anos da Independência e que trazia o então casal sensação da TV Tarcísio Meira (Dom Pedro I) e Glória Menezes (Marquesa de Santos, seu grande amor), todos seguiram céleres ao ostracismo - mesmo os bons 'Mauá', protagonizado por Paulo Betti e 'Tiradentes', vivido por José Wilker.
Afinal, não é fácil conceber um longa que retrate um período da história - e mais: que fale de forma imparcial sobre uma figura tão controversa quanto a de Getúlio Vargas.
Afinal, o pequeno estancieiro gaúcho, até hoje aclamado como um de nossos maiores políticos populistas, se criou e manteve vários direitos trabalhistas que estão nos beneficiando até hoje, por outro, usou esses mesmos benefícios como forma de manipulação da massa e tirou a força dos sindicatos.
Tony Ramos como Getúlio Vargas - Imagens dessa postagem: Divulgação/Copacabana Filmes
Pior: chegou ao poder graças a um golpe contra um presidente legitimamente eleito - Júlio Prestes, em 1930 - prometeu eleições gerais, não as fez e graças a um congresso tão corrupto quando o atual, e mesmo tendo a Revolução Paulista/Constitucionalista de 1932 pelo meio, foi ficando, ficando e encarcerando seus desafetos ou mesmo defenestrando-os para a morte.
Foi o caso de Olga Benário, judia casada com o líder comunista Luiz Carlos Prestes e que, mandada à Alemanha nazista, morreu num campo de concentração.
Ao contrário do que a propaganda da época apregoava, Getúlio Vargas era, sim, um ditador, sanguinário e absolutamente sem escrúpulos, para mim um dos piores políticos que esse país já teve.
Felizmente, o diretor João Jardim (do fantástico 'Lixo Extraordinário') optou por abrir 'Getúlio' - que estreia hoje em 126 salas em todo o Brasil - com um resumo dos fatos, com aspectos positivos e negativos e focando a trama nos últimos 19 dias de vida do então presidente, que havia voltado ao poder legitimamente eleito e nos braços do povo.
Se o diretor nos dá, desde o início, a intenção de não nos entregar um longa 'chapa branca', o fato é que o carismático Tony Ramos - o maior ator da sua geração, disparado - consegue interpretar Getúlio com uma ambiguidade que faz dele um personagem não só verdadeiro,como palatável até a quem o considere uma boa bisca, como eu.
O longa foca do dia do atentado da Rua Toneleiro contra o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda (Alexandre Borges), até o suicídio de Getúlio.
Alexandre Borges como Carlos Lacerda
Esse recorte de 19 dias serviu para desenvolver as personagens sem pressa no contexto e, como apresenta o título, tenta enquadrar o ser humano por trás de tanto poder.
Só que, justamente por optar pela derrocada, acaba impregnando as cenas com uma certa compaixão pelo político e fica mesmo difícil fugir disso.
Tony Ramos brilha aqui como nunca brilhou nas telonas: nem no show que dá nas comédias 'Se Eu Fosse Você', Tony está tão completamente a serviço da sua personagem.
Lógico, sua composição de Vargas é muito ajudada pela concepção visual, que o fez raspar parte do cabelo, dos pelos do peito, usar uma maquiagem que o transforma em velho com veracidade e mais: uma prótese corporal de látex, muito semelhante a que atores de Hollywood usam para fazer babás e vovozonas, deixou o ator com o corpinho redondo que vemos em toda foto de Getúlio.
Prótese corporal de látex deixou Tony com o corpo de Getúlio
O resultado o faz alcançar uma representação visual quase perfeita em alguns momentos, mesmo que a escolha de um ator global e querido não deixe de carregar uma ideologia.
Obviamente, a atuação transcende os limites da persona pública, mas nunca vai deixá-la completamente de lado e esse é um ponto especialmente importante num filme histórico.
Ao lado do protagonista, Drica Moraes exibe uma presença magnífica como Alzira, filha de Vargas, com a relação dos dois ganhando profundidade em pequenos momentos do lar - como na boa cena quando ela amarra os sapatos do pai, que nunca soube fazê-lo.
Presença curiosa e mal explicada é a da esposa, numa passagem extremamente breve - hoje, sabe-se que ela vivia afastada dele pela maior parte das suas vidas e que Alzira era realmente seu braço direito, familiar e político.
Drica Moraes como Alzira, filha e braço direito de Getúlio
O longa também é muito feliz em utilizar como set o próprio Palácio do Catete, no centro do Rio, onde Getúlio morava e trabalhava e que atualmente é um museu.
As filmagens no próprio local onde os fatos aconteceram, captadas com uma bela iluminação, só enfatizam o clima de época e de ostentação do poder.
Aliás, a reconstituição detalhada tanto do ambiente quanto das situações é outro ponto forte do longa: pode-se ouvir o barulho do sangue nos passos de Carlos Lacerda após tomar o tiro na rua Toneleiro.
Uma cena em especial, quase no fim do longa, mostra um certo transtorno dessa figura interpretada por Alexandre Borges, rende um grande momento e uma tentativa de manter a imparcialidade e não colocar o maior opositor político que Getúlio teve na vida como vilão.
Há cuidado também para não causar comoção no espectador por meio de trilha sonora, outro mérito.
Mesmo com esses vários aspetos positivos, o longa é por vezes desgastante de se ver por ser didático demais, aula de história demais, indicando os nomes de todos os envolvidos nos meandros do governo - de fato, é um bom filme para se apresentar aos mais novos.
Outro ponto a ser questionado, especialmente neste ano de aniversário de 40 anos do Golpe Militar de 1964, é a representação dos militares.
No decorrer do longa, eles passam a assombrar cada vez mais os pensamentos do ditador, até nos pesadelos - e no contraponto à imagem tirânica desse grupo, pode-se pensar em Vargas como o 'injustiçado', o que não é verdade.
Getúlio em um dos seus famosos discursos de primeiro de maio
Assim, e por meio de atuações eficientes e extremo cuidado ao retratar um período, o longa conseguiu reconstruir de forma quase imparcial um momento tenso do Brasil.
Finalizando, é sempre importante ressaltar que o longa não reflete a história, apenas apresenta um quadro pelo ponto de vista de quem o concebeu e sua estreia num primeiro de maio, dia em que Getúlio sempre fazia seus principais discursos - ele começava com um "Trabalhadores do Brasil" - não é mera coincidência.
Esperamos outros quadros que revelem mais a fundo as tantas facetas de Vargas, inclusive vindos pelas mãos hábeis da diretora e aqui produtora Carla Camurati, que aqui volta ao cinema, para nossa alegria.
Confira o trailer do longa:
*****
'GETÚLIO'
Gênero:
Drama
Direção:
João Jardim
Roteiro:
George Moura, João Jardim
Elenco:
Ac Costa, Adriano Garib, Alexandre Borges, Alvaro Diniz, Caco Baresi, Clarisse Abujamra, Cláudio Tovar, Daniel Dantas, Drica Moraes, Fernando Luís, Gillray Coutinho, José Raposo, Juan Martyn, Leonardo Medeiros, Luciano Chirolli, Marcelo Médici, Murilo Elbas, Murilo Grossi, Paulo Giardini, Paulo Japyassu, Sílvio Matos, Thiago Justino, Tony Ramos
Produção:
Carla Camurati
Fotografia:
Walter Carvalho
Montador:
Pedro Bronz
Trilha Sonora:
Federico Jusid
Duração:
100 min.
Ano:
2014
País:
Brasil
Cor:
Colorido
Estreia no Brasil:
01/05/2014
Distribuidora:
Copacabana Filmes
Estúdio:
Copacabana Filmes / Midas Filmes
Classificação:
12 anos
Cotação do Klau:
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