O Festival de Cinema de Berlim é assim mesmo: as produções de cunho político ou social dominam a briga pelo Urso de Ouro e, ao menos, os primeiros concorrentes desta edição 2014 foram dignos e, alguns, bem interessantes.
'O Grande Hotel Budapeste' é um dos melhores trabalhos do diretor Wes Anderson, o que quer dizer bastante - mas ainda não surgiu nada que se possa chamar de arrebatador.
Tirando Anderson, o melhor da primeira leva é o inglês ‘71', do estreante em longas Yann Demange, filme que volta ao auge do conflito entre católicos e protestantes em Belfast.
O protagonista é Gary Hook (Jack O’Connell, uma das promessas deste ano), um garoto que, mal terminado seu treinamento como soldado, é mandado para a capital da Irlanda do Norte.
Em uma batida em residências católicas, o que era para ser fácil se torna impossível diante da revolta dos moradores e Gary fica perdido em território inimigo.
Demange cria uma atmosfera de terror, em que o protagonista nunca sabe de onde vem o perigo.
Nas cenas da revolta popular, ele usa a câmera na mão, balançando mesmo – chega a dar náuseas, mas coloca o espectador ao lado de Gary.
Também toma cuidado para não transformar nenhum dos lados em mocinho ou vilão - ambos são nebulosos.
Há cenas que beiram o inverossímil (seria difícil acontecer tudo com uma mesma pessoa em uma única noite), mas o carisma do ator e a tensão sustentada por todo o filme compensam a falha.
Confira o trailer de '71':
O terceiro longa-metragem da competição foi o alemão 'Jack', de Edward Berger.
O personagem-título é um garoto de dez anos (o ótimo Ivo Pietzcker) responsável por cuidar de si mesmo e do irmão menor, Manuel (George Arms, que parece o Pequeno Príncipe).
A mãe, Sanna (Luise Heyer), é solteira e quer mais saber dos namorados do que dos filhos.
Quando está com os meninos, é ótima, mas frequentemente os deixa sozinhos.
Um dia, Manuel se queima na água quente da banheira, Jack é culpado e levado para uma espécie de reformatório.
Triste, solitário, ele acaba fazendo uma besteira e foge, mas sua mãe não está em casa, e os dois meninos passam dias perambulando pelas ruas.
'Jack' bebe na fonte dos irmãos Dardenne ('O Garoto de Bicicleta' e 'A Criança'), é econômico e bem resolvido, mas não conta nada exatamente novo.
O cartaz do longa - divulgação
Já o francês Rachid Bouchareb apresentou 'La Voie de L’Ennemi'/'Two Men in Town'/'Dois Homens na Cidade', uma coprodução entre França, Argélia, Estados Unidos e Bélgica baseada num thriller de 1973 do roteirista e diretor francês José Giovanni.
A história foi transposta para os EUA, mais precisamente para o Novo México, onde William Garnett (Forest Whitaker) acaba de sair em condicional, depois de 18 anos preso pelo assassinato de um policial.
Na cidadezinha em que se passa o filme, ele recebe ajuda de uma nova agente que acompanha a sua condicional (Brenda Blethyn), mas a sua segunda chance vai ser atrapalhada pelo xerife (Harvey Keitel), incapaz de perdoá-lo pela morte do colega, embora sinta compaixão pelos mexicanos que atravessam a fronteira, e ainda vai ser pressionado pelo amigo Terence (Luis Guzmán) a voltar para o crime.
Bouchareb captura o clima tenso na região de fronteira dos Estados Unidos com o México e discute com competência o sistema prisional americano e a real possibilidade de um criminoso se regenerar, mas também não é “o” filme da competição.
Confira o trailer de 'Two Men in Town':
O segundo concorrente da casa, 'Die Geliebten Schwestern'/As Irmãs Amadas', volta de Dominik Graf à direção de longas após oito anos, conta uma história de amor entre as irmãs Charlotte von Lengefeld (Henriette Confurius) e Caroline von Beulwitz (Hannah Herzprung) e entre as duas e o poeta Friedrich Schiller (Florian Stetter), um dos maiores da língua alemã no século 18.
As duas faziam parte da aristocracia turíngia (com capital em Weimar), mas ficaram sem dinheiro após a morte do pai.
Caroline se casou pela fortuna do marido, mas era infeliz.
As duas, que juraram dividir tudo, dividiram inclusive Schiller, que se casou com Charlotte para disfarçar o triângulo.
Claro que as coisas foram azedando com o tempo.
Em vez de seguir o caminho mais óbvio, de fazer uma biografia do poeta, o longa se detém nos complicados relacionamentos entre as mulheres (além das irmãs, também há a mãe das duas, Louise).
O triângulo amoroso do longa - Divulgação
E tem o mérito de mostrar um mundo em transformação, em que a aristocracia perdia força sob os ventos das revoltas pré-Revolução Francesa.
'Die Geliebten Schwestern' apresenta uma história bastante curiosa, mas nem sempre a seu uso aparentemente irônico dos clichês do melodrama cai bem aos olhos de quem vive no século 21.
Em alguns momentos, o espectador fica na dúvida se é uma brincadeira com o gênero ou se tudo não passa mesmo de uma novela ruim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário