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Aos 20 anos, o jovem ator, que também arrebentou na série 'Sintonia', da Netflix, conta que já passou fome e foi salvo do crime pelo teatro
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Em 16 de novembro de 2018, Christian Malheiros estava no mercado com a mãe.
Era dia de folga das gravações de “Sintonia”, a série que, no ano seguinte, viraria um hit da Netflix.
Ele recebeu uma mensagem com um link que dizia:
“Ator brasileiro é indicado ao Oscar do cinema independente”.
Intrigado, abriu a reportagem para ver quem era esse artista que estava ganhando reconhecimento mundo afora. Deparou-se com sua próprio foto e ficou confuso: Independent Spirit Awards? Nunca tinha ouvido falar.
Sua performance em seu primeiro filme, “Sócrates”, já em cartaz, colocou-o na corrida pelo prêmio americano mais importante do cinema independente, cuja cerimônia aconteceu em 23 de fevereiro.
Ele concorreu com grandes nomes da indústria, como Joaquin Phoenix, por “Você nunca esteve realmente aqui”, e Ethan Hawke, de “Fé corrompida” (que ganhou).
O longa de Alexandre Moratto, rodado na Baixada Santista a um custo de apenas US$ 20 mil — arrecadados nos EUA, onde o diretor mora — de alguma forma chamou atenção dos jurados do Spirit, após passagem por alguns festivais internacionais.
Recebeu ainda uma indicação na categoria John Cassavetes Award, dedicada a filmes de baixo orçamento, e Moratto ganhou o prêmio de “talento promissor”.
"Fiquei em pânico, foi assustador, eu não tinha noção de nada" — admite Malheiros, de 20 anos, sobre a indicação.
Aos poucos, absorveu a notícia.
No tapete vermelho do Spirit, parecia um astro como qualquer outro, com seu blazer preto sobre uma blusa marrom de gola alta.
Relembre o trailer de 'Sócrates':
Hoje, o ator tem quase 1 milhão de seguidores no Instagram, graças ao sucesso de “Sintonia”, em que interpreta Nando, um jovem da periferia paulista que vira traficante para sustentar a família.
É reconhecido na rua e parado por desconhecidos para tirar fotos.
Ele ainda tenta lidar com essa nova realidade, buscando conforto no pensamento de que a “euforia das pessoas” também é uma forma de carinho.
Nando lembra Sócrates em certos aspectos: ambos são jovens pobres da periferia paulista em busca de uma vida melhor (“Essa é minha história também”, complementa o ator que os interpreta). Mas o personagem da série escolhe a vida do crime, enquanto o do filme busca uma alternativa digna após a morte repentina da mãe.
Ameaçado de ser despejado de casa e enviado a um orfanato, Sócrates peregrina pelas ruas de Santos atrás de trabalho, sem sucesso. O desespero o levar a cogitar a prostituição ou recorrer ao pai violento. Acaba fazendo um bico num ferro velho, onde conhece Maicon (Tales Ordakji), por quem se apaixona. Há uma cena quente de beijo e sexo.
“Sócrates” foi o grande vencedor do Festival Mix Brasil e do troféu Felix, do Festival do Rio, voltados a obras com temática LGBT.
Malheiros em cena de 'Sócrates' - Divulgação |
"Fazer beijo gay num filme não é nada. Beijo é beijo, a gente faz na vida real por prazer. Foi muito mais difícil fazer a cena em que Sócrates come restos de comida no lixo, porque eu já passei fome" — diz o ator, que hoje mora no Centro da capital paulista.
Malheiros se refere à infância na periferia de Santos, onde os pais, retirantes nordestinos e analfabetos, assentaram-se após rodar o Brasil em busca de uma condição de vida digna.
"Eu acordava e via os traficantes vendendo drogas, sabia como funcionava o esquema, e também andava com gente que fazia isso. Seria bem mais fácil entrar nessa vida, por isso não julgo quem opta por ela. Fui salvo pelo teatro".
Tales Ordakji e Christian Malheiros, em cena de 'Sócrates' - Divulgação |
O teatro entrou em sua vida aos 9 anos, quando se inscreveu, por pura curiosidade, numa oficina de atuação da escola. No documento de autorização exigido pela instituição, falsificou a assinatura da mãe, porque achou que ela, uma dona de casa, não ia gostar que o filho virasse artista. Aí não parou.
Quando a Escola de Artes Cênicas (EAC) de Santos abriu processo seletivo para jovens atores de pelo menos 16 anos, tentou a sorte mesmo tendo 15. Levou um “não” de cara, mas passou um mês ligando e batendo na porta. Finalmente, a diretora lhe deu uma chance, vencida pela “chatice do menino”, como lembra Malheiros. Ensaiou durante cinco dias (“Mal dormia por causa da ansiedade”) e, enfim, foi aprovado. Dois anos depois, a diretora da EAC lhe diria que aquele tinha sido o melhor teste já realizado na história da escola.
A essa altura, Malheiros estava satisfeito com os rumos que sua vida tinha tomado, tanto que não cogitava fazer cinema — para ele, uma possibilidade distante de sua realidade. Mesmo assim, fez o teste para “Sócrates” quando o diretor Alexandre Moratto chegou dos EUA à procura de talentos. O filme foi produzido pela Querô Filmes, por meio de seu instituto homônimo — situado na cidade do litoral paulista —, que capacita jovens de 16 a 20 anos para o audiovisual.
"Testamos mais de mil pessoas. Christian foi o primeiro. É muito talentoso, o problema é que ele vinha do teatro, atuava daquele jeito “grande” — lembra Moratto.
"Falei: “Christian, a câmera vai ampliar em 30 vezes tudo o que você fizer, os gestos do seu rosto e a sua emoção. Então atue mais “pequeno”. Ele ajustou imediatamente. Foi o momento em que falei: “É ele”.
O “New York Times” disse que o longa “vigoroso honra a resiliência que existe dentro de nós”. Para o “Hollywood Reporter”, a produção é “impressionante em sua autenticidade corajosa e poderosa”. Algumas poucas críticas, porém, apontaram o que consideram excesso de sofrimento na história.
"É um personagem que quer ser uma pessoa íntegra, ter um futuro, uma vida comum, sem se jogar no mundo de crime, drogas e prostituição, mas ele está inconformado porque de certa forma é como só houvesse essa opções" — defende Malheiros.
"Meninos como Sócrates existem, estão por aí na rua, não há idealização nenhuma no filme".
A mesma opinião é dispensada a “Sintonia” e ao seu personagem Nando. Para Malheiros, a série mostra que a favela paulista é bem diferente da carioca, popularizada mundo afora por “Cidade de Deus” (2002) — Fernando Meirelles, aliás, assina a produção-executiva de “Sócrates”.
Em cena de 'Sintonia' - Netflix/Divulgação |
"Pra mim, o Chris é o próximo Lázaro Ramos" — prevê Johnny Araújo, que divide a direção da série com KondZilla.
"Ele chegava no set citando as frases do roteiro que não tinha entendido, questionava. Ele ouve, não tem ansiedade, e transforma orientações concisas em camadas complexas de atuação. Dá pra ver isso na cena em que Nando mata uma pessoa pela primeira vez: aquele jeito como mexe a cabeça, falando só pelos olhos. Dá pra ver que ali dentro tem um turbilhão de pensamentos".
No próximo mês, Malheiros embarca no próximo desafio, em Portugal, onde vai rodar “A Última Festa”, filme de Matheus Souza que se passa durante uma formatura.
"Fiz uns 800 testes e escolhi o Christian de primeira — afirma Souza, o mesmo de “Apenas o fim” (2008) e “Ana e Vitória” (2018). — Depois de escalado, ele me ajudou a selecionar o par dele na trama. Chegou um dia no teste sem ter almoçado, então a produção comprou um pastel. Perguntei se ele queria parar pra comer, mas ele respondeu: “Prefiro usar o pastel na cena”. Isso resume quem é o Christian: uma pessoa que reage rapidamente a qualquer situação. Tem aquele brilho, sei lá, coisa de estrela mesmo, tipo Leonardo DiCaprio".
Relembre o trailer de 'Sintonia':
Matéria: Fabiano Ristow - O Globo
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