SINOPSE:
Aos 65 anos, Clara (Sonia Braga) é uma jornalista aposentada, viúva e mãe de três adultos.
Ela mora em um apartamento defronte para o mar, na Av. Boa Viagem, no Recife, onde criou seus filhos e viveu boa parte de sua vida.
Interessada em construir um novo prédio no espaço, os responsáveis por uma construtora conseguiram comprar todos os apartamentos do prédio - menos o dela.
Agora, por mais que tenha deixado bem claro que não pretende vendê-lo, Clara sofre todo tipo de assédio e ameaça para que mude de ideia.
CRÍTICA:
Nos últimos anos, nossos cinemas ficaram lotados de comédias brasileiras, estreladas pelos mesmos Leandro Hassum e Ingrid Guimarães de sempre.
Todas são sucesso de bilheteria - o que não quer dizer que sejam bons filmes, muito ao contrário, a esmagadora maioria é ruim de dar dó.
Nesse deserto de bons longas, é de se louvar o que o estado de Pernambuco tem feito, entregando sempre os melhores filmes brasileiros da atualidade e surpreendendo ao se tornar referência de vanguarda, com produções como 'Febre Do Rato', 'Baixio Das Bestas', 'Cinema, Aspirinas E Urubus' e 'O Som Ao Redor', bem-sucedido suspense de Kléber Mendonça Filho.
Agora, Mendonça Filho retorna com 'Aquarius', em exibição em 80 salas em todo o Brasil, muito elogiado no último Festival de Cannes e que vem ganhando importantes prêmios em outros festivais mundo afora.
Sonia Braga é a protagonista Clara - Fotos dessa Postagem: Divulgação/Imagem Filmes |
Se causou polêmica no festival francês, depois do elenco protestar contra o presidente golpista Michel Temer com cartazes perante a mídia global presente, o tema não é o foco do longa, mesmo com a crítica social ainda muito presente.
Em seu melhor papel no cinema em anos, Sonia Braga faz aqui uma interpretação madura, carismática, muito segura e sensível da jornalista e crítica musical Clara, viúva que vive sozinha num apartamento do prédio Aquarius, à beira-mar da capital pernambucana .
Foi nesse imóvel que ela teve as melhores lembranças de sua vida, onde criou seus três filhos - hoje já adultos - e superou um câncer de mama.
Entretanto, o prédio é cobiçado por uma empreiteira, que quer modernizá-lo, mas Clara se nega a vender o apartamento, se tornando a única moradora do condomínio e travando uma batalha contra a empresa.
Ela é uma mulher à frente de seu tempo, em todos os sentidos: se recusa a abaixar a cabeça para a vida, seja quando se nega a vender seu apartamento, seja quando enfrenta o discurso conservador dos filhos, uma bem vinda personificação de resistência nesses tempos bicudos do Brasil.
Cena do longa |
Na juventude, ela deixou os filhos com o pai para focar em sua carreira - tabu até para os dias de hoje - e agora, viúva, ela faz questão de ter uma vida social e sexual ativa, contratando até os serviços de um garoto de programa.
O longa não se resume apenas ao talento de Sonia e à valorização da memória.
Assim como fez em 'O Som ao Redor', o diretor espalha vários comentários e situações ácidas que tão bem representam a hipocrisia existente na convivência diária entre classes sociais no país.
O próprio conceito de ética é também trabalhado em relação ao mercado, pela forma como os representantes da construtora se comportam a partir das seguidas recusas de Clara.
Há ainda o olhar absolutamente natural sobre a sexualidade, como algo decorrente da existência humana - inclusive, chama a atenção o contraponto criado da primeira memória sexual surgir justamente durante uma pacata reunião familiar.
Cena do longa |
Com um olhar extremamente afetuoso em Clara e a partir dela, o filme ainda brilha pela trilha sonora, repleta de referências emocionais e históricas ao que é ser brasileiro.
A fotografia solar também merece destaque, ressaltando as várias fases e a beleza da praia de Boa Viagem e também a amplitude do apartamento em que Clara vive.
Além disto, há certos enquadramentos que impressionam, seja por criar falsas expectativas sobre o que está por vir ou simplesmente pela sequência de eventos tão díspares exibidos com um mero movimento de câmera.
Lidando com a linha tênue entre a nostalgia e a memória, o longa é um belíssimo estudo sobre o Brasil atual e suas idiossincrasias, apontadas com olhar clínico e sem lantejoulas pelo diretor, muitas vezes de forma bastante política.
O melhor exemplo é a discussão ocorrida sobre a falta de caráter humano, de uma importância abissal para a própria vida e que poderia ser facilmente encaixada em vários outros absurdos cotidianos do nosso país.
No longa, Kléber opta por uma narrativa linear e bastante clara, dividindo-a em três partes e abusando do recurso do flashback em sua composição.
A marcação temporal se dá nas roupas, no visual e no tom da fotografia, com exceção da vitrola, que se mantém presente, mesmo dividindo espaço com o MP3 e o streaming, provando que a moderno e o antigo, como o próprio edifício Aquarius, podem coexistir no mesmo espaço.
Cena do longa |
Em uma das cenas, após sua filha se referir ao prédio como velho, Clara a questiona:
"Quando você gosta é vintage, mas quando não gosta é velho?"
O filme acabou recebendo classificação etária de 18 anos, com todos tendo a certeza de que o governo golpista fez isso justamente para retaliar o longa, seu diretor e seu elenco pelo protesto em Cannes.
A Vitrine Filmes, distribuidora do longa, chegou a entrar com um recurso para diminuir a idade, mas esse primeiro pedido foi negado, levando o elenco e demais membros da classe artística a protestarem.
No site do órgão, a classificação do filme tinha sido justificada pelas cenas de "uso de drogas" e "sexo explícito".
Entretanto, as escassas cenas de sexo e a ausência de palavrões fazem com que essa decisão fosse descabida.
Depois da chiadeira geral, finalmente na tarde desta quinta (1), o ministério da Justiça foi obrigado a voltar atrás e reduziu a idade permitida para 16 anos - menos mal.
No longa, tudo deixa a impressão de que não se trata apenas de um embate entre o mais forte e o mais fraco, sistema e oprimido.
É, sim, um questionamento sobre modernização ser sinônimo de apagarmos o passado.
Filme simples, catalizador, que conta uma boa história, bem dirigido, com fotografia inspirada e direção e elenco absolutamente seguros.
Lógico, não vai ter a mesma bilheteria dessas comediazinhas sem vergonha, que semana sim, semana também, ocupam, mal, o já escasso espaço do cinema brasileiro nas salas de cinema - hoje estreia mais uma, pavorosa, com a onipresente Ingrid Guimarães.
Mas é zilhões de vezes melhor.
Um filme marcante e necessário, especialmente para uma época sombria de relações humanas tão degradadas.
Melhor filme brasileiro de 2016, disparado.
PRÊMIOS RECEBIDOS ATÉ AGORA:
Festival de Sidney - Melhor Filme
Festival de Transatlantyk - Melhor Filme
Festival de Lima - Prêmio do Júri e Melhor Atriz (Sonia Braga)
Festival de Amsterdã - Melhor Filme
TRAILER:
FICHA TÉCNICA:
'AQUARIUS':
Gênero:
Drama, suspense
Direção e Roteiro:
Kleber Mendonça Filho
Elenco:
Buda Lira, Carla Ribas, Daniel Porpino, Fernando Teixeira, Humberto Carrão, Irandhir Santos, Julia Bernat, Maeve Jinkings, Paula De Renor, Pedro Queiroz, Rubens Santos, Sonia Braga, Thaia Perez
Produção:
Emilie Lesclaux, Michel Merkt, Saïd Ben Saïd
Fotografia:
Fabrício Tadeu, Pedro Sotero
Duração:
142 min.
Ano:
2016
País:
Brasil / França
Cor:
Colorido
Estreia:
01/09/2016 (Brasil)
Distribuidora:
Vitrine Filmes
Estúdio:
Cinemascópio Produções / SBS Productions
Classificação Etária:
16 anos
COTAÇÃO DO KLAU:
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