sexta-feira, 15 de outubro de 2010

ABORTO, MISTURADO À POLÍTICA E À RELIGIÃO: NADA A VER


Quem se opõe à descriminalização do aborto defende não a vida, mas uma crença religiosa



Algum tempo atrás, o presidente Luiz Inácio previu que, nas eleições deste ano, todos os candidatos à Presidência seriam de esquerda.

Realmente, os três mais votados candidatos do primeiro turno são considerados de esquerda.

Só que pensaria o contrário quem, sem nada saber dos candidatos, visse as fotos diárias que a imprensa publica de cada um deles a assistir à missa; ou suas declarações de fé; ou suas confraternizações com pastores e políticos evangélicos; ou as promessas de obediência que fazem a líderes religiosos; ou suas renegações da proposta da descriminalização do aborto...

Dias atrás, afirmando que uma eleição é o pior momento para debater qualquer questão que seja, o psicanalista e colunista da "Folha", Contardo Calligaris, postergou uma discussão sobre o aborto, no que ele estava certíssimo.

Só que, cansado de ler - e ouvir - inúmeros ataques à tese de que o aborto deve ser descriminalizado, mas nenhum argumento a favor disso, resolvi lembrar aqui alguns que me parecem decisivos.

Para mim, os argumentos mais decisivos são os do filósofo francês Francis Kaplan no seu livro "O Embrião É um Ser Vivo?".

Segundo Kaplan, deve-se distinguir entre "estar vivo" e "ser um ser vivo".

Um ser vivo não é apenas um ser que tem funções - pois várias partes do ser vivo têm funções -, mas um ser que tem todas as funções necessárias para estar vivo.

Assim é um ser humano, por exemplo.
Já o olho do ser humano, na medida em que lhe faculta enxergar, está vivo, mas não é um ser vivo.
O olho está vivo somente na medida em que faz parte do ser vivo que é o ser humano.

Assim também o embrião está vivo somente enquanto parte de outro ser vivo, que é a sua mãe.
Por si mesmo, "as funções vitais de que ele precisa para estar vivo são as da mãe. É graças à função digestiva da mãe que ele recebe o alimento, que pode usar somente por lhe chegar previamente digerido pela mãe; é graças à função glicogênica do fígado da mãe que ele recebe a glicose; é graças à função respiratória da mãe que os glóbulos vermelhos de seu sangue recebem o oxigênio; é graças à função excretória da mãe que ele expulsa materiais prejudiciais, dejetos que, de outro modo, o envenenariam", relata Kaplan.

E ele continua: "Não é o embrião que se desenvolve: é a mãe que, por meio da produção da serotonina periférica no sangue, determina, durante mais da metade da gestação, o desenvolvimento neurobiológico e a viabilidade futura do organismo que carrega".

Kaplan explica que, pelo menos até o terceiro mês da concepção, o feto não tem atividade cerebral.
Acontece que, como ele observa, "um homem sem atividade cerebral é considerado clinicamente morto".

Ora, "o prazo de três meses é o prazo dentro do qual a maioria das mulheres que quer abortar aborta, mesmo que possam legalmente fazê-lo mais tarde".

Dito isso, vê-se que não é verdadeiro, como se supõe às vezes, que o embrião esteja para uma criança como uma semente para uma árvore ou um ovo para uma ave.

Uma semente largada na terra pode tornar-se uma árvore; e um ovo pode, sendo incubado, tornar-se uma ave; um embrião, porém, não é capaz de se tornar uma criança fora do corpo da mãe.

Concluindo, não se pode comparar a destruição de uma semente com a derrubada de uma árvore nem se pode comparar quebrar um ovo com matar uma ave, menos ainda se pode comparar o aborto, como querem alguns religiosos, com o assassinato de uma pessoa.

Sobre a tese de que a vida da mãe não vale mais que a do feto,
diga-se a verdade: quem se opõe à descriminalização do aborto defende não a vida, como alega, mas sim uma crença religiosa segundo a qual nem o prazer sexual pode ser um fim em si mesmo nem o ser humano é dono de si próprio ou do seu corpo.

Cada um tem o direito à crença religiosa que bem entender, mas o Estado, que deve ser laico, não pode adotar nenhuma delas em particular.

Nenhuma mulher recorre ao aborto por prazer, mas por sofrimento e para evitar ainda maior sofrimento para si, para sua família e para a criança que nasceria.

E é uma grande crueldade que o Estado penalize ainda mais justamente as mulheres pobres que, sem recursos, são obrigadas a praticar o aborto nos açougues das esquinas brasileiras.

Pior que isso, só o Holocausto, e o Poder Público tem o dever de prover os seus cidadãos de meios que mantenham sua saúde em níveis aceitáveis, olhando o aborto
como um problema de saúde pública, e não moral ou religiosa.

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