terça-feira, 25 de junho de 2019

'GOOD OMENS': CRÍTICA DA 1ª TEMPORADA


SINOPSE:

Good Omens - livro que, no Brasil, ganhou o titulo de "Belas Maldições" - carrega no sarcasmo ao levantar uma questão essencial: O que define o bem e o mal?

Será a bondade ou a maldade, elemento intrínseco ao ser humano?

Ou construções morais definidas pelo ambiente que nos cerca e pelas escolhas que fazemos?

Como um Saramago em "Caim", Neil Gaiman usa os temas bíblicos, assim como os temas morais que fundamentam a religião cristã, como forma de discutir o que define as crenças que direcionam essas nossas escolhas.

O anjo Aziraphale (Michael Sheen) e o demonio Crawley... ou melhor, Crowley (David Tennant, maravilhoso) formaram uma relação de cumplicidade (que se confunde nos mais variados níveis) que nasceu ainda no começo dos tempos, no fatídico dia em que Eva deu aquela dentada no fruto proibido (instigada por Crowlay, evidentemente).

CRÍTICA:

Anjos e demônios, desde o florescer da civilização, caminham entre nós - e eles adoram viver por aqui, agindo, interferindo, algumas vezes um anulando o trabalho do outro mas, na maior parte das vezes, um colaborando com o outro, ainda que os dos lados estejam vivendo uma espécie de de guerra fria, que espera pela sua crise dos mísseis em Cuba (no caso, o Apocalipse) para pegarem em armas e recomeçar a batalha campal entre céu e inferno.

A humanidade que inunda os dois personagens, que adoram os pequenos prazeres que aproveitamos - ter um belo carro, comer crepes em Paris, ter um porre de vinho falando mal do trabalho - é também a zona cinza a justificar que tudo em demasia, ou pureza, não acaba bem.

Enquanto céu e Inferno radicalizam suas posições ao alimentar a guerra entre eles quando não desafiam o "Grande Plano" - e tudo que Deus planeja (e não explica pra ninguém) coisas como o grande dilúvio, a morte de Cristo e, mais recentemente, o apocalipse - nossos heróis, primeiro questionam, para então, subverter as regras, leis e profecias, ainda que pelos bastidores.

E não poderia ser mais providencial quando colocar o próprio Anticristo, ainda bebê, no lugar correto vira incumbência de Crowley.

Mas, no melhor estilo das comédias de erros, em vez de levar o filho do capiroto para uma influente família americana, ele acaba com um pacato casal de uma cidadezinha nas proximidades de Londres.

A dupla acaba acompanhando, por 11 anos, a criança errada, influenciando a, cada qual do seu lado, na esperança dele crescer e se tornar um jovem equilibrado, com tendências para os dois lados, na pior das hipóteses, normal.

Uma vez descoberto o engano, começa uma corrida para encontrar o garoto certo a fim de evitar que ele encontre os quatro cavaleiros do apocalipse e desencadeie o Armagedon.

Paralelamente a tudo isso, acompanhamos os jovens Anathema Device (Adria Arjona) e Newton Pulsifer (Jack Whitehall), a herdeira de uma antiga linhagem de bruxas e um atrapalhado aspirante a engenheiro da computação, herdeiro da linhagem de matadores de bruxa que as caçavam.

Anathema teve sua vida inteira moldada pelo livro de profecias escrito por sua mais notável ancestral, Agnes Nutter (Josie Lawrence), a última - e verdadeira - bruxa a ser queimada, na Inglaterra.

O livro é um verdadeiro manual com todo tipo de profecia, coisas bem específicas, que vão de que horas uma pessoa vai chegar em um local, até dicas de investimento sugerindo não comprar Betamax.

Seu destino é impedir o fim do mundo, e no processo, os caminhos dela se cruzam com os de Pulsifer, uma vez a Nemesis da sua família, agora, aliado.

Por fim, alheio ao seu destino, o enviado das trevas Adam Young (Sam Taylor Buck) segue se divertindo com seus amigos, Brian (Ilan Galkoff), Pepper (Amma Ris), Wensleydale (Alfie Taylor) e, mais tarde, o fofo cão de guarda de Adam (sabe o cachorrão preto que sempre aparece pra cuidar da cria do tinhoso? Pois é...).

Mas o destino é inevitável e o "Grande Plano" uma vez colocado em movimento, precisa ir até o fim.

A série abusa do inesperado, do ridículo e do nonsense, numa espiral de eventos sem qualquer aparente ligação, conectados por informações avulsas, que soam espertas mas, que no fim da contas se não nos fazem sentir espertos por capturar alguma graça de sua aleatoriedade boba, nos deixa confusos por não entender essa ligação.

De uma forma ou de outra, somos feitos de bobos - e isso não é ruim, tanto que acabamos rindo de nossa própria estupidez.

Esse papel de ligação vem de ninguém menos que Deus. 
Ou melhor, a voz de Deus, papel que ficou com a vencedora do Oscar, Frances McDormand.

É engenhoso colocar uma mulher no papel do todo poderoso - de fato, Hollywood tem, já há algum tempo, brincado com o sexo dos anjos, como quando vimos Tilda Swinton como Gabriel em Constantine (2005), e aqui, os arcanjos Miguel e Uriel são interpretados por mulheres - e Frances dá o tom e a gravidade corretos à essencial função de narrador dentro desse estilo que mistura cinismo, sarcasmo com um certo encantamento e esperança.

Uma narração agridoce, que encontra ecos em outro exemplar da literatura britânica que também ganhou as telas: "O Guia do Mochileiro das Galáxias". 

De fato, não é difícil se conectar com outros produtos da ficção inglesa uma vez que bebe, frequentemente, dessas fontes.

O contínuo jogo de trocadilhos e provérbios, de fazer piada da desgraça, a mistura do contemporâneo com o cafona, ou mesmo com elementos que parecem criados por crianças (afinal, o Anticristo é uma criança ainda) tem muito da aparente inocência de um "Dr Who" por exemplo (poxa, tem até o David Tennant surtando na tela!).

Falemos um pouco do céu e inferno, duas representações distintas da ideia de ambiente de trabalho (não à toa, referidas constantemente como "Administração").

Enquanto o céu parece um daqueles prédios envidraçados tão limpos, claros e brancos que até doem na vista, o inferno é a literal representação de uma repartição pública, saída diretamente do inicio dos anos 90.

Não passa despercebido ainda a escolha de certos papéis para certos cargos.

Num elenco quase completamente formado de atores britânicos, colocar o americano Jon "Don Draper" Hamm na posição de Gabriel (todo trabalhado no fitness e na arrogância), soa como uma provocação.

Não é pra menos, os americanos, e tudo que se refere aos EUA, é motivo de piada.

É divertido rir do ridículo, do inusitado, da corrente inconsistência do nonsense, mas, mais do que isso, é bom rir de si, da sua própria ignorância.

A crítica a essas instituições, a qualidade falha delas mas, principalmente, das pessoas que insistem em mantê-las, em acreditar nelas. A auto crítica é a joia da coroa aqui, como em toda boa comédia britânica.

Temos criticas evidentes, como a passagem de cenas bíblicas em que o demônio condena as ações cruéis de Deus contra os homens, assim como ele mostra que alguns dos momentos mais violentos da humanidade nem ele, nem qualquer outro demônio nada teve a ver com o fato - foi tudo obra da imaginação dos próprios humanos.

Na parte técnica, a estética farsesca já começa na abertura que exibe uma animação em cortes de papel, imprimindo um tom lúdico e sarcástico.

Os efeitos especiais, ainda que bem executados, também não tem uma preocupação grande em soarem reais.

Muita coisa prefere, na verdade, reforçar o aspecto teatral, seja de tragédia, seja de comédia, que a trama desenvolve quando coloca o mundo como "o palco" de tudo. Na trilha, muito, mas muito Queen, pontuando cada movimento.

Começamos com o demônio humanizado sendo apresentado a sua missão ao som de Bohemian Rhapsody.

Segue com um acidente envolvendo uma bicicleta que recebe a justa trilha de "bicycle race", a preocupação de um amigo com outro ao som de "you're my best friend" ou quando Crowley se põe à guerra para salvar o mundo ao som de "we will rock you".

Se parece fazer falta pincelar algo sobre as demais religiões, é porque Neil Gaiman já extrapolou o que podia com Deuses Americanos (que rendeu outra boa série).

Esta já oferece muitos temas para discussão dentro da teologia cristã.

A série é curta, 6 episódios, e uma das grandes qualidades de uma trama, relativamente, complexa, com múltiplas tramas e personagens, é não dar espaço para barrigas ou subtramas desnecessárias.

A tentação para fazer uma nova temporada pode ser grande, e ainda que não haja grandes pontas soltas, foram deixadas migalhas para explorar, afinal, que tipo de mundo incrível, inesperado e imprevisto no "Grande Plano" pode surgir?

GALERIA DE IMAGENS:






TRAILER:



FICHA TÉCNICA:
Good Omens
Formato:
Série
Duração dos Episódios:
51–58 minutos
Criador:
Neil Gaiman, baseado no livro de Terry Pratchett & Neil Gaiman
País de origem:
Estados Unidos/Reino Unido
Diretor:
Douglas Mackinnon
Produtor(es) executivo(s):
Neil Gaiman, Caroline Skinner, Chris Sussman, Rob Wilkins, Rod Brown
Roteirista:
Neil Gaiman
Elenco:
David Tennant, Michael Sheen, Anna Maxwell Martin, Jon Hamm, Josie Lawrence, Adria Arjona, Michael McKean, Jack Whitehall, Miranda Richardson, Nick Offerman
Estúdios:
Narrativia, The Blank Corporation, BBC Studios, Amazon Studios
Exibição:
Amazon Prime Video
N.º de temporadas:
1
N.º de episódios:
6

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