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Sensacional, nova série do universo trekker mostra sua conexão com as intenções originais do criador Gene Roddenberry
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Na ficção, o termo retcon - retroactive continuity - significa qualquer tipo de revisão de obra passada.
Normalmente apresentada em um novo capítulo, com informações inéditas sobre eventos pregressos, a retcon altera a continuidade estabelecida.
Fãs costumam detestar retcons, já que a maioria delas, afinal, soa barata, uma mera tentativa de novos autores de mexerem no cânone para se destacarem de alguma forma.
Boas retcons são raras, tão raras que quando algo formidável surge nesse sentido daria até para propor um novo termo: Improved Continuity, a melhoria da continuidade.
É o caso de Star Trek: Discovery, adaptação de Bryan Fuller e Alex Kurtzman que a Netflix exibe fora dos EUA, onde é exibida pelo streaming CBS All Access.
Porém, a sétima série de Jornada nas Estrelas começou confundindo.
Afinal, garantia ser canônica, mas acompanhava uma nave experimental sem registro em qualquer episódio, livro, filme, jogo ou história em quadrinhos conhecidas da criação de Gene Roddenberry.
Onde estava o cânone então?
E o pior... além das naves e personagens inéditos, conhecíamos ali um lado mais sombrio da Frota Estelar, com personagens moralmente questionáveis contrastando com os bastiões de integridade que nos acostumamos a ver no universo de Star Trek.
A principal delas, Michael Burnham, vivida com garra e talento por Sonequa Martin-Green (que em The Walking Dead não conseguiu mostrar nem metade de sua qualidade como atriz), é a contradição ambulante dessa busca pela validação trekkie da continuidade.
Sonequa Martin-Green é a protagonista Michael Burnham - Fotos dessa Postagem: Divulgação/CBS All Access |
Irmã adotiva do ícone Spock, ela encarna uma parente que ele jamais comentou existir.
E uma que quebra as regras e comete erros imperdoáveis.
Onde estava a Star Trek que conhecemos?
A resposta, que desperta a ira de parte dos fãs mais focados em eventos do que essência, é simples: se reinventando para um mundo bem mais complexo e competitivo que o ano de 1966, quando a CBS foi aonde emissora alguma jamais esteve.
Ao longo da primeira temporada, fomos entendendo como as peças se encaixam cronologicamente, ao mesmo tempo em que Michael se transforma - e entendemos seu passado, seu fardo e sua culpa.
O conceito da tripulação como família, algo tão valorizado na série, se enraíza sem qualquer pressa.
Personagens de apoio vão crescendo enquanto a Discovery singra o espaço, viaja para outra dimensão e tem papel fundamental na guerra entre a Frota Estelar e os Klingons (que também ganham profundidade aqui como cultura e sociedade muito além do idioma e canções de bebedeira).
A primeira temporada já tinha conquistado os fãs com sua estranheza e uma devoção à ciência que andava esquecida... mas quando entregou o fan service supremo, a certeza de que acompanharíamos a série por muito tempo.
É que na cena final, ninguém resistiu à figura majestosa da USS Enterprise entrando em cena.
A Discovery encontra a Enterprise: cena icônica |
A segunda temporada reintroduziu antigos personagens como Christopher Pike (Anson Mount), que por desígnio do comando passa a capitanear a estratégica Discovery, nave que é operada por um motor de esporos, o que a faz uma das armas mais avançadas da Federação - já que é capaz de saltos pelo hiperespaço, teleportando-se.
Pike é a âncora moral que contamina a Discovery, um presente do passado que os roteiristas fazem questão de valorizar.
Há até um episódio em que o "anteriormente em Star Trek: Discovery" mostra eventos ocorridos no episódio-piloto "The Cage", recusado pelos produtores da Série Original na década de 1960 e recriado.
Vemos ali Jeffrey Hunter como Pike, que antecedeu William Shatner e seu Capitão Kirk e os clássicos cenários mambembes, que Discovery revisita com devoção, amarrando eras.
Christopher Pike é interpretado por Anson Mount |
A segunda temporada é ousada também ao trabalhar a figura mais icônica de Star Trek: o oficial de ciências Spock surge interpretado por Ethan Peck de uma forma poucas vezes vista, perturbado e fora de si, alucinando devido às visões de um Anjo Vermelho e o fim de tudo.
O novo ano acompanha a "busca por Spock" e o entendimento de misteriosos sinais sobre pontos aleatórios da galáxia, com a Discovery correndo contra o tempo para impedir o fim da vida.
Ethan Peck como Spock |
Os 14 episódios provam uma intenção clara dos roteiristas, que amarram cada mistério e inconsistência ao final, não apenas dos acontecimentos da série em si mas também da sua relação com o cânone, deixando também pistas para um futuro intrigante envolvendo o novo grande inimigo da Federação, o CONTROLE.
Outro tema recorrente em Star Trek é o sacrifício - e Discovery leva esse conceito a um patamar diferente e ousado.
Um que faz acreditar que existe vida para a visão de Gene Roddenberry neste futuro distópico em que vivemos.
Ao ficar mais emocionalmente complexa e perturbada, Star Trek: Discovery se relaciona com o mundo de hoje como a Série Original se relacionava com a realidade da Guerra Fria em 1966.
É incrível, porém, que já há mais de 50 anos depois de seu lançamento, a série ainda precisa discutir temas como diversidade (Roddenberry acreditava que a essa altura já seríamos mais evoluídos) e o empoderamento feminino (todas as mulheres da série são incríveis), mas incorpora a isso outras questões que só poderiam acontecer hoje.
Não são os Ba'ul e seu controle de Kaminar, o planeta-natal de Saru (Doug Jones), no episódio "The Sound of Thunder" o melhor exemplo de fake news que a TV já produziu, por exemplo?
Doug Jones é Saru |
Ou as questões envolvendo a rede micelial de "Saints of Imperfection" uma discussão difícil sobre ecologia e responsabilidade em tempos de nações questionando acordos como o de Paris?
Ao mergulhar nas intenções de Roddenberry e não apenas tentar replicar personagens e situações, Star Trek: Discovery prova que é possível reinventar sem distorcer.
Reverenciando e também atualizando.
Ao se adequar ao seu tempo e seguir audaciosamente adiante, essa nova Jornada chega no momento em que o mundo mais precisa de Kirk, Spock e Bones... ou melhor, de Michael, Saru e Stamets.
A cena final mostra Spock adentrando a ponte de comando da Enterprise, já com o visual clássico que todos conhecemos.
Spock com seu clássico visual |
O que será da Discovery no futuro?
Só saberemos quando a terceira temporada - que começa a ser rodada em breve - estrear em 2020.
Vida longa e próspera a Star Trek: Discovery.
RELEMBRE O TRAILER DA SEGUNDA TEMPORADA:
COTAÇÃO DO KLAU:
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