quinta-feira, 4 de junho de 2020

R.I.P.: MISS BIÁ, A DIVA DAS DIVAS DOS ARTISTAS LGBT+ DE SP

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Figurinista e maquiador de Hebe Camargo, o também ator transformista morreu nesta quarta (3), aos 80 anos, vítima da Covid 19
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Eduardo Albarella, a icônica Miss Biá, um dos artistas transformistas pioneiros no Brasil, com 60 anos de carreira, morreu nesta quarta (3) em São Paulo vítima do novo coronavírus - a informação foi confirmada por sua sobrinha Adriana do Nascimento.

Segundo ela, Albarella estava internado há cerca de dez dias por causa da Covid-19.

Eduardo Albarella posa desmontado e já como Miss Biá, participa da Parada LGBT+ DE SP - Veja SP

A notícia foi recebida com muita tristeza entre artistas LGBT+.

"Temos um ditado entre nós de que 'quando uma de nós morre, nós morremos um pouco'. Com a perda da Miss Biá ouso dizer que só hoje perdemos muito!" - disse a drag queen Ikaro Kadoshi ao G1.

"Ela era o símbolo da luta, resistência e amor pela arte do transformismo/drag queen. Venceu inúmeras barreiras. Desafiou a ditadura, o tempo, as gerações. Ela era assim, destemida. Uma força da natureza cheia de luz. Um farol em mar revolto. Ficamos, todos nós, sem direção" - completou.

Drag queen pioneira no Brasil, Miss Biá morre vítima do coronavírus
Miss Biá posa em casa - G1
Em 2018, Biá se apresentou na festa drag Priscilla em São Paulo, conhecida pelo público jovem, na mesma noite de uma estrela do reality show norte-americano "Ru Paul's Drag Race".

A apresentadora do evento, a também veterana Silvetty Montilla, disse: "As pessoas pensam que a modernidade não pode estar junto com o antigo. Quando se tem talento, tudo vive junto."

Confira a participação de Miss Biá no 'Espuma com Montilla', programa da Drag no YoyTube:


Biá ainda estava na ativa: era residente de uma boate, em São Paulo, onde apresentava a programação da noite, todos os sábados, às 3h.

"Ela nunca faltou", lembra José Roberto Pinheiro, diretor artístico da Danger.

"Foi a primeira transformista que eu vi na vida, na extinta boate Nostro Mundo, fazendo um cover da Hebe, com o sofá onde recebia famosos. E, 25 anos depois, eu comecei a dirigi-la e dava a mão para ela descer as escadas do palco", orgulha-se Pinheiro.

Miss Biá, 71 anos com corpinho de 50 - Cultura - Estadão
Biá no Palco, lugar onde sempre brilhou - Estadão
Alexia Twister, atriz e drag queen, descreveu a artista como sendo alegre e leve: "Biá era muito feliz, alto astral, sempre sorrindo".

"Sempre que eu a via, me sentava do lado e puxava conversa. Biá tinha histórias incríveis. Ela sempre dizia 'antigamente, não era dublagem, não.Tínhamos que saber cantar e dançar", recorda Alexia.

A Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, que organiza o evento, emitiu uma nota de pesar.

"Miss Biá, persona de Eduardo Albarella de 80 anos, começou na arte do transformismo no início da década de 60 e não parou mais. Arte, irreverência e bom humor. Estamos em luto. A saudade estará sempre presente", diz o texto.

O apresentador e jornalista Fernando Oliveira, o Fefito postou uma foto com Biá na parada LGBT+ de SP no seu Instagram, com um belo texto:
"Miss Biá era uma LENDA. Era GIGANTE. Perdemos hoje uma pioneira. Alguém que, em tempos de ditadura, ousou ser artista, ousou ser drag queen - ou transformista, como se dizia na época. Alguém que homenageava a maior apresentadora da TV brasileira, Hebe Camargo, com seu trabalho e sentou no sofá mais famoso do país, em um tempo de grande preconceito. Alguém que, no começo das anos 90 distribuiu camisinhas vestida de freira para conscientizar a população sobre prevenção ao HIV. Miss Biá pavimentou um caminho IMENSO para LGBTs como eu com sua cara e coragem. Sempre que a encontrava prestava reverência. Era sempre leve, agradável. Miss Biá era a história de uma comunidade inteira. Que amava tanto sua arte que desfilava pela sala, sozinha, testando seus figurinos (e eu bem espiei esse momento da varanda de um amigo e depois me diverti contando a ela). Miss Biá era vanguarda, era apaixonada pela vida. Miss Biá é mais uma que perdemos para o covid. Miss Biá merece todas as homenagens e deixa um legado imenso. Que falta ela fará. To arrasado. 💔🌈"

Fefito e Miss Miá - Instagram do apresentador
Muitas outras personalidades LGBT+, como Márcia Pantera, Stephanie di Bourbon e Gretta Starr também usaram as redes sociais para fazer homenagens sinceras e comoventes a Miss Biá.

O Museu da Diversidade Sexual colheu ótimos depoimentos de quem fez e faz acontecer as noites LGBT de São Paulo - Miss Miá foi uma das que deu um ótimo depoimento.

Veja:


MISS BIÁ - UM PERFIL
Por Marina Pinhoni, Tatiana Regadas e Thaís Lima, G1 — São Paulo, 06/10/2017

Entrar no apartamento de Miss Biá, no Centro de São Paulo, é uma verdadeira viagem ao passado. 

Os arabescos e bibelôs da decoração remetem ao que ela exalta como “tempos áureos” de glamour da noite paulistana. 

E não é para menos. 

Faz 57 anos que Eduardo Albarella - um senhor de 78 anos - sobe nos saltos, coloca peruca, monta os melhores figurinos e capricha na maquiagem para viver a personagem.

“Onde eu estiver, a mais velha sempre sou eu. Porque não tem ninguém antes de mim. E ainda na ativa”, diz Albarella, que é um dos primeiros atores transformistas do Brasil. 

O trabalho desses artistas que usavam maiôs e vestidos em shows de dança, canto e interpretação é precursor no país do que hoje conhecemos como arte drag.

Aos 21 anos, Albarella era office boy e morava com sua família no Brás. 

Foi depois de sair com amigas para assistir a um show em um cabaré na Av. Rio Branco que decidiu se montar pela primeira vez. 

“Não existia show de transformistas, mas eu fiquei encantado. Aí falei: ‘eu também quero fazer’”.

Foram as mesmas amigas que cederam as peças para a transformação inicial. 

“Elas me emprestaram tudo. Naquela época eu usava jóias que elas tinham, pois elas eram muito bem posicionadas. Hoje em dia é tudo bijuteria, né?”

A inspiração para o uso do nome Biá, que já era seu apelido, veio de uma música de Carmen Miranda

Já o visual foi uma homenagem à atriz italiana Gina Lollobrigida, que foi sucesso nos anos cinquenta. 

“Falavam que eu era parecida com a Lollobrigida. E olha como eu era mesmo”, diz mostrando fotos.

“A gente tinha referências de quem era uma Rita Hayworth, uma Marilyn Monroe e procurava fazer aquilo de uma forma bonita. Ginger Rogers… dançar mais ou menos igual”

Surgia então Miss Biá.

Miss Biá compara uma foto sua do início da carreira com a foto da atriz Gina Lollobrigida, sua inspiração — Foto: Celso Tavares/G1

'Quando eu cheguei era tudo mato'
“Quando comecei não existia dublagem. Então tinha que cantar. Tinha shows montados com músicas especialmente para a gente. Depois o investimento financeiro das casas foi escasseando e a gente foi mudando a maneira de se apresentar”, relembra.

Biá conta que, no início dos anos 60, não existia boates específicas para o público LGBT+ em São Paulo.

“A primeira boate em que fizemos show era hétero. O La Vie En Rose, que ficava aqui na chamada Boca do Lixo (no Centro). E lotava, ia todo mundo. Existia a curiosidade de querer ver uma coisa inédita”.

Depois do La Vie En Rose, Miss Biá se apresentou por anos em várias casas gays, como a Medieval e a Corintho.

Mas foi na Nostro Mondo que ela virou estrela ao fazer uma sátira de Hebe Camargo e recebendo para divertidas entrevistas ao vivo nomes como Paulo Autran, Raul Cortez, Regina Duarte, Claudia Raia, Ney Matogrosso e Wanderléia, num sofá colocado no diminuto palco da boate.

Alfinetes da Hebe
Não é por acaso que Albarella tinha bagagem para impersonar Hebe Camargo. 

Ele trabalhou por quase trinta anos como maquiador e figurinista da apresentadora, profissões que sempre exerceu em paralelo às apresentações como Miss Biá.

“Quando a Hebe foi para a Bandeirantes, eu fiz uma roupa que repercutiu muito. Era Natal, então falei: ‘vou te fazer uma roupa vermelha’. Eu coloquei a perna dela meio de fora… aí o telefone começou a tocar adoidado. ‘Quem fez essa roupa da Hebe?!’”

Sem ter feito cursos de costura, Albarella diz que a experiência dos palcos foi o que ajudou a ganhar projeção como figurinista e estilista. 

“Você tem uma visibilidade muito boa do que é bonito, do que vai ficar bom. Eu me visto e sei numa roupa o que funciona. Isso tudo quem me deu foi o palco”, diz.

Como Hebe como a Hebe, nos anos 1980 - Arquivo Pessoal
Ditadura e perseguição
Se hoje as drag queens estão por toda parte, fazendo sucesso na TV e se apresentando para o grande público, nem sempre foi assim. 

A comunidade gay foi duramente perseguida na época da ditadura militar no Brasil.

“Na ditadura era proibido homem se vestir de mulher. Então eu comecei a trabalhar de menino. Eu pequenininho, com uma blusinha rosa, fazia números com uma mulata que era vedete. Aí depois a censura liberou e eu voltei a trabalhar como mulher e tô até hoje. Mas na época da ditadura foi complicado”, diz.

Mesmo após os anos de chumbo, os transformistas não podiam sair na rua com os figurinos com os quais se apresentavam. 

“Nós não saíamos assim montadas. Tinha que levar a peruca na mão. Se botasse na cabeça eles prendiam porque achavam que era prostituição”, conta Biá.

No início dos anos oitenta, durante o governo estadual de Paulo Maluf, rondas de policiamento ostensivo intensificaram-se na área central da capital. 

Centenas de homossexuais, travestis e prostitutas foram perseguidos e presos nas operações de “limpeza” comandadas pelo delegado José Wilson Richetti.

“O Richetti que era o tormento de todo gay. Uma vez ele levou quase seiscentas presas. Aí uma pessoa conhecida foi conversar com ele e ver o que poderia ser feito. Então ele foi com a equipe, assistiu a um show da gente e adorou. Ficou alucinado. Então ele liberou para que eu e as outras que trabalham comigo pudéssemos sair na rua de mulher”, afirma.

O novo sempre vem
Aos 78 anos, Albarella já se aposentou do trabalho como estilista e maquiador. 

Mas Miss Biá continua na ativa todos os sábados na boate Danger, onde apresenta os shows da noite. 

Para ela, o segredo da longevidade está no “glamour”.

“Se fosse só bonita, há 30 anos já tinha parado. Duas coisas: se você tem talento e se tem glamour, meu bem, não tem quem derruba. Modéstia à parte, eu digo até com orgulho: eu sou uma velha glamurosa”, diz rindo.

Apesar de achar que houve uma banalização do mercado, com pagamento de cachês mais baixos nas boates devido à grande oferta de “gente que se monta”, Miss Biá vê com bons olhos a nova onda de drags cantoras - como Pabllo Vittar.

“[Elas são] maravilhosas, essas vão para frente. Elas são drag, mas não têm comportamento de quem faz uma coisinha aqui e outra lá. Elas se preocupam com uma produção boa, com bom cachê para se apresentar. Você tem que valorizar o que você faz”, afirma.

Miss Biá mostra uma foto sua ao lado de Rogéria — Foto: Celso Tavares/G1

A MISS BIÁ QUE EU CONHECI
Por Cláudio Nóvoa - Blog de Klau

Imaginem um rapazinho tímido, com uns 17 anos, amante do cinema e dos musicais indo pela segunda vez a uma boate gay e topando com uma performance sensacional dessas no palco!

Foi aí que conheci o talento de Miss Biá na Boate Nostro Mondo - essa performance era tão icônica que todo show dela tinha de ter!

Confira:


Mas o que valeu foi ter conhecido sua persona, Eduardo Albarella, horas depois, no camarim da boate.

Muito amiga da dona da Nostro, Condessa Mônica, Biá já tinha uma carreira consolidada e justamente por isso, sempre servia como conselheira das transformistas (hoje temos algo mais ou menos parecido, as Drag Queens) mais jovens.

Ensinava como andar, se sentar, usar talheres - era praticamente uma 'mãe de miss'.

Nunca fomos amigos, mas nos esbarrávamos em praticamente todas as casas onde ela trabalhou - e ela sempre me tratou com carinho e atenção.

Quando a Hebe (Camargo) ainda estava na Band, nos víamos todo domingo à noite - o programa era ao vivo, direto do teatro da emissora na Av. Brigadeiro Luiz Antonio, quase esquina com a Rua Pedroso.

Albarella era seu maquiador preferido - e um dos estilistas que a Diva da TV mais gostava.

Pensem na Hebe entrando no palco, para dar início a mais um programa: a maioria dos figurinos que a gente lembra que ela vestiu nos programas são de Albarella.

Imperdível: veja o primeiro programa de Hebe Camargo no SBT - SBT
Hebe, no seu programa de estreia no SBT: figurino é de Albarella - SBT/Divulgação
Fez vestidos fantásticos, com muito brilho, que funcionavam divinamente bem na TV e no corpo de Hebe.

Após o programa, Hebe costumava levar toda a sua equipe para jantar - e Albarella era divertido, inteligente, uma ótima companhia à mesa.

E claro, voltava a vê-la, já como Miss Biá, às vezes meia hora depois de terminado o jantar, já brilhando no palco da boate onde eu terminaria meu domingo.

Grande figura.

Ficamos algum tempo sem nos vermos - eu, por opção, não frequento mais nada à noite já faz décadas.

Há uns três anos, indo até a Santa Casa para retirar remédios para a minha mãe, topei com o Albarella saindo de um prédio próximo, não sabia que ele morava lá.

Não me reconheceu de imediato, mas quando eu disse quem eu era, a primeira coisa que lembrou era que eu, nos tais jantares, comia um prato que dava pra dois e depois pedia cafezinho com adoçante...

Ele achava "o cúmulo da canalhice"...

Fomos tomar café, me contou que agora era residente na Danger, uma boate LGBT também ali do lado, me convidou a ir.

Nunca fui - ia para a noite praticamente todos os dias, dos 17 aos 40 anos, já chega né?

Perdi mais uma performance de Miss Biá como apresentadora - como no dia da morte da Condessa Mônica: ela era a apresentadora da Nostro Mondo e foi a incumbida de subir ao palco e anunciar a morte da dona, amiga e empregadora.

Perguntei no cafezinho sobre esse dia. 
Biá me respondeu que foi um piores da vida dela, que não sabia até o dia em que conversávamos como subiu ao palco, como transmitiu a triste notícia aos  fiéis frequentadores e como comandou o espetáculo que se seguiu - afinal, o show não pode parar.

Grande figura, inteligente, bom humor em grau dez.

Vai fazer muita falta nesse mundo politicamente correto, chato e violento em que vivemos.

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